Durante anos, a Apple construiu o seu império com um misto de elegância industrial, integração vertical e parcimónia quase calvinista nas suas decisões de investimento. O império do iPhone prosperou com a disciplina financeira que contrastava com os gastos desenfreados de rivais como a Amazon ou o Google. Mas essa estratégia, que outrora se confundia com prudência estratégica, começa agora a parecer hesitação. E na corrida pela supremacia da Inteligência Artificial, a hesitação é o caminho mais curto para a irrelevância.
Numa recente conversa com analistas, Tim Cook fez soar um novo sino — a Apple está disposta a gastar mais. Em data centers. Em aquisições. Em AI. A frase “não estamos presos a um determinado tamanho de empresa” vinda do CEO da Apple não é apenas uma mudança de tom. É o som de uma empresa que, pressionada pela realidade, percebeu que a sua abordagem artesanal à inteligência artificial está perigosamente aquém do que os tempos exigem.
Enquanto a Microsoft se fundia com a OpenAI num abraço quase simbiótico, e a Google despejava dezenas de milhares de milhões em infraestruturas e modelos generativos, a Apple entretinha-se a refinar o Siri. Com alguma graça. Discretamente. Quase como se a revolução em curso fosse apenas mais uma moda passageira.
Os resultados estão à vista: enquanto o Copilot da Microsoft já está integrado em aplicações críticas como o Office, e o Gemini da Google se espalha por todo o ecossistema Android, a Apple promete “melhorias no Siri” — mas só em 2026. É um atraso estratégico que revela não só uma falta de pressa, mas também uma incompreensão do ritmo acelerado da disrupção atual.
Historicamente, a Apple evita grandes aquisições. O seu maior negócio — a compra da Beats por 3 mil milhões de dólares em 2014 — parece hoje uma curiosidade de museu. Na prática, a Apple prefere comprar pequenas equipas altamente especializadas e integrá-las num ecossistema fechado e controlado. Essa estratégia funcionou para o hardware. Para o software. Mas para a Inteligência Artificial generativa — que exige escalar, experimentar e adaptar em tempo real — esse modelo pode estar a revelar-se insuficiente.
Os concorrentes já entenderam que esta é uma corrida que exige profundidade de capital, infraestrutura colossais e alianças ousadas. Microsoft e Google vão gastar, respetivamente, mais de 100 e 85 mil milhões de dólares em data centers e capacidades de AI num só ano. A Apple? Apenas promete gastar “substancialmente mais”. Sem números, sem planos concretos. Apenas uma vaga intenção.
Mais preocupante ainda para Cupertino é o possível colapso do seu pacto silencioso com a Google, que rende dezenas de milhar de milhões anuais em troca do motor de busca predefinido no Safari. Caso os tribunais norte-americanos considerem esse acordo como prejudicial à concorrência, a Apple pode perder não apenas receitas, mas também a sua posição estratégica na guerra dos motores de busca.
A ironia é cruel: durante anos, a Apple beneficiou da Google, ao mesmo tempo que a mantinha à distância. Agora, poderá ter de enfrentar a mesma Google no campo da inteligência artificial, sem o mesmo arsenal e sem uma visão clara. Fala-se da possível aquisição da Perplexity — um motor de busca emergente movido a AI — mas por enquanto, nada mais do que rumores. E mesmo que se concretize, será suficiente?
O que está em causa não é apenas a capacidade da Apple investir mais — é a capacidade de mudar a sua própria natureza. A Apple é uma empresa que se sente mais confortável a polir detalhes do que a correr riscos em aberto. Mas a nova era digital exige velocidade, volume e vulnerabilidade — características pouco associadas ao ADN de Cupertino.
Tim Cook diz estar “aberto” a M&A que acelerem o roadmap. A pergunta certa talvez seja: estará a Apple aberta a mudar o próprio roadmap?
Porque a verdade é esta: neste momento, a Apple não lidera. Não inova. Apenas segue. E para uma marca que se habituou a moldar o futuro, esse papel de seguidora é um desconforto que o tempo e o mercado não perdoarão. A inteligência artificial não espera. Nem pela a Apple.