
As regras do decoro no ténis sempre tiveram uma leitura mais liberal no US Open, conhecido pelos seus ruidosos adeptos e ambiente mais descontraído. Ainda assim, há marcas que não se podem pisar. Como entrar em court entre um primeiro e um segundo serviço, altura solene de concentração para um tenista.
No encontro entre Daniil Medvedev e Benjamin Bonzi, da 1.ª ronda do último torneio do Grand Slam do ano, tal regra foi quebrada por um fotógrafo. Para mais, numa altura em que Bonzi tinha match point para fechar a contenda frente ao favorito russo. Perante a irrefletida invasão, o árbitro de cadeira do encontro permitiu que o tenista francês repetisse o primeiro serviço. E foi aqui que Medvedev explodiu, protagonizando mais um pequeno show no US Open, algo em que é useiro e vezeiro.
Não concordando com a decisão, o número 13 do ranking acercou-se da cadeira de Greg Allensworth, expelindo uma grande variedade de insultos.
“És um homem? És um homem? Porque é que estás a tremer?”, gritou o tenista, continuando depois uma espécie de solilóquio, dirigindo-se para a câmara mais próxima do árbitro, a quem acusou de querer despachar o encontro: “Ele quer ir para casa, malta, ele não gosta de estar aqui. É pago por jogo, não à hora.”
Seguiu-se então uma referência a Reilly Opelka, tenista norte-americano que no início do ano teve uma altercação com Allensworth, considerando o compatriota “o pior árbitro do circuito”. Tudo isto enquanto Medvedev levantava os braços, pedindo o apoio do público, também insatisfeito com a decisão que poderia ajudar o francês a terminar o encontro logo ali.
As bancadas aderiram aos apelos do russo, com quem vão tendo uma relação de amor-ódio. Em 2019, numa já lendária entrevista pós-jogo, ainda em court, Medvedev usou da sua mais fina ironia, como que saído diretamente de um romance clássico russo, para reagir a um encontro em que teve o público sempre contra si, com vaias e assobiadelas constantes. “Obrigado, malta. A vossa energia hoje deu-me esta vitória. Se vocês não estivessem cá, eu provavelmente iria perder. Eu quero que vocês saibam, para quando hoje forem dormir: eu ganhei por causa de vocês!”, atirou, provocando ainda mais a ira do público.
O certo é que a atitude desafiadora acabou por ganhar o respeito do público nova-iorquino, que gosta de um bom alvoroço e de um bom bad boy, como se viu no apoio que teve na maior vitória da sua carreira, precisamente em Flushing Meadows, em 2021. E no confronto com Allensworth, as bancadas responderam vaiando o árbitro de cadeira durante mais de seis minutos, o que impediu Bonzi de servir. Medvedev respondeu atirando corações aos adeptos, pedindo ainda mais barulho.
Perante tamanho cenário, o francês seria mesmo quebrado e Medvedev voltou a entrar no encontro, que foi a cinco sets. O objetivo de usar o público a seu favor parecia concretizado, mas Medvedev, a viver uma temporada terrível, seria mesmo derrotado por Bonzi no derradeiro parcial (6-3, 7-5, 6-7, 0-6 e 6-4), somando a terceira derrota consecutiva em primeiras rondas de torneios do Grand Slam - e a última, em Wimbledon, foi precisamente frente a Bonzi, humilde número 51 do ranking.
“O Daniil colocou achas na fogueira para levar o público à loucura. Honestamente, nunca tinha visto nada assim na minha vida. Talvez num estádio de futebol, mas não no ténis”, comentou o gaulês no final de um encontro que o deixou “orgulhoso”. Antes de sair do court, após a derrota, Medvedev ainda brindou o público com o espancamento do seu banco com uma inocente raquete, que não resistiu à fúria do russo.
Honestidade e médias responsabilidades
De Daniil Medvedev podemos esperar um pouco de tudo, nomeadamente sinceridade. Na curta conferência de imprensa que se seguiu ao desaire, o tenista de 29 anos surgiu composto, até sorridente. “Na minha cabeça, eu ainda queria fazer pior. Não posso, porque há regras. Apenas expressei as minhas emoções, o quão discordava da decisão”, sublinhou, no seu estilo desconcertante, atirando que até se tinha “divertido” com a situação.
Negou depois ter incentivado o público a provocar a paragem de seis minutos. “Fizeram o que fizeram sem eu lhes pedir muito”, disse, agradecendo o apoio, que o ajudou “a voltar ao jogo”. Depois, incorporando a sua melhor imitação de José Mourinho, optou por não falar da referência a Reilly Opelka, mas deixando, naturalmente, mensagens pelo meio: “Se falar fico em maus lençóis, mas toda a gente sabe porque é que eu referi o Reilly. Sei que vou ser multado, multam tipos como eu muito mais do que os outros. Tipos como eu, o [Nick] Kyrgios, o [Alexander] Bublik.”
Ainda assim, o russo não afastou algumas das suas responsabilidades. Assumiu que jogou mal e que tem de melhorar para dar a volta por cima numa época em que chegou apenas a uma final, na relva de Halle, perdida para Bublik. Em torneios do Grand Slam, venceu apenas um encontro, na Austrália. “Tenho de jogar melhor e vou tentar fazê-lo no próximo ano”, apontou.
Quem terá também de esperar mais um ano para entrar em campo no US Open é o fotógrafo que foi o motivo de toda esta bagunça. A federação norte-americana de ténis confirmou que, depois de ter sido retirado do court, o profissional também ficou sem credencial para o que resta do torneio.