Paisagens deslumbrantes a cada estrada percorrida, glaciares vários a pontuarem montanhas e ovelhas, mesmo muitas ovelhas, a perder de vista nos pastos verdejantes. Generalizar a Nova Zelândia em jeito de resumo dos seus encantos pode acabar numa descrição destas, embora ao pé-coxinho ficasse se não fosse acrescentado o maior amor desportivo de um povo, o râguebi, querido no país que é, como nenhum outro, sinónimo da modalidade oval. Mas nem lá, há três anos, a final do último Mundial feminino atraiu mais gente do que a inauguração do que acabou de arrancar.

Em Sunderland, terra nem por isso muito dada à versão feminina de râguebi, o Stadium of Light, recinto fiel ao futebol, encheu-se no nordeste de Inglaterra com 42.723 pessoas que viram as Red Roses destroçarem os EUA, por 66-7. A enchente superou, por pouco, os 42.579 espetadores que povoaram o Eden Park, tempo da modalidade na Nova Zelândia, em 2022, quando a nação que mais forçou a seclusão durante a pandemia se abria de novo à normalidade.

Logo na sexta-feira este Campeonato do Mundo revestiu-se de um recorde, um prévio ao certo que virá no final de setembro, vindo da lotação que já se sabe esgotada para a final do torneio, no mítico Twickenham, casa do râguebi inglês em Londres onde estarão mais de 82 mil almas. Será a maior assistência da história de um jogo de râguebi feminino - o estádio, nas fronteiras de Londres, já detinha o anterior recorde, fixado nas 52.498 pessoas -, outra prova que atesta à popularidade crescente das mulheres que correm com uma bola oval nas mãos. E muito correm, e ainda bem.

Molly Darlington - World Rugby

Um dos traços do râguebi no feminino que os encontros da primeira ronda da fase de grupos evidenciaram é a predileção pelo jogo à mão, seja qual for a seleção. Viu-se nos foguetes com pernas de Inglaterra, previsivelmente por serem a principal candidata à conquista do torneio, cheias de pressa para atropelarem os EUA com o embalo da veloz Ellie Kildunne, atual melhor jogadora do planeta, de tal modo (69-7) que o resultado serviu o engodo de se poder pensar que as americanas são um conjunto pueril, dócil no potencial. Mas também se verificou nas samoanas, insistentes nas tentativas de furarem em combinações de passes a impenetrável muralha da Austrália que lhes impôs a derrota mais gorda da ronda inaugural (73-0).

As corajosas mulheres da Samoa somaram 156 corridas com a bola na mão, mais 30 do que as feitas pelas inglesas. Entre os países há continentes, oceanos e abismos raguebísticos que a vontade em manter o jogo junto à relva, na bulha entre corpos e no choque literal de intenções que apraz ao espetáculo teve eco em quase todos os encontros da primeira jornada, mesmo nos que vincaram a lâmina do desequilíbrio deste Mundial, reflexo das dores de crescimento que ainda acompanham o râguebi feminino.

A World Rugby alargou o torneio, nesta edição, de 12 para 16 seleções. Na vida oval entre mulheres ainda breve em seleções de topo, a expansão permite que mais equipas experimentem o alto nível, conheçam os Himalaias da exigência, se desafiem no desconforto. As amadoras das Ilhas Fiji, estreantes em 2012, soluçaram por oxigénio contra o ímpeto (65-7) do Canadá, frenético a lançar Julia Schell, a número 15 vinda de trás que marcou seis dos 11 ensaios, todos na segunda parte, instigada pelo treinador. “Disse-lhe ao intervalo: ‘Julia, tens de ganhar os teus um-contra-um.’ E ela respondeu-me: ‘Vou provar que estás enganado.’”, contou Kévin Rouet, o selecionador canadiano sapiente do botão mental em que tinha de carregar.

Stu Forster

Faces do desequilíbrio, nem por isso as fijianas deixaram de preferir o choque aos pontapés na oval, registando 302 metros ganhos em corridas com bola, não muito longe, por exemplo, dos 473 somados pelas profissionais de França contra as de Itália na única partida nivelada (24-0) da ronda de estreia. Mesmo no desequilíbrio se notou dois lados a quererem jogar para o deleite de que os vê.

Essa fome por irem para a frente, tentarem à mão e arriscar armou o conluio que fez as espanholas - em março, no Cartaxo, só venceram Portugal por 7-19 no Seis Nações B, pista de que a distância para o nível mínimo do Mundial não está longe - sofrerem um último ensaio da Nova Zelândia, dentro do derradeiro quarto de hora do jogo, quando as campeãs mundiais tinham menos duas jogadoras em campo, culpa de lesões e do número de substituições esgotadas.

O toque de meta pertenceu a Portia Woodman, provável melhor jogadora da história, sem dúvida uma das histórias deste Mundial, aos 34 anos. “Como posso ser a GOAT [Greatest Of All Time] se ainda estou a aprender?”, disse a humilde lenda, antes do torneio, ao “The Observer”, quem tem o recorde de ensaios pelas Black Ferns, embora mais dedicada seja aos sevens, variante em que foi a primeira mulher a superar os 250 ensaios e onde a Nova Zelândia requereu o potencial de Jorja Miller, outra candidata a figura do torneio: tem 21 anos, apenas começou no râguebi de 15 em maio e ninguém superou mais adversárias (11) do que ela na primeira colheita de jogos.

Outro desbalanço de forças, sê-lo-ia sempre, esteve no encontro da África do Sul com a estreante seleção brasileira, para quem este duelo foi apenas o 17.º test match (jogo oficial) do râguebi de 15. A magra bagagem não impediu as jogadoras de celebrarem os únicos pontos (perdeu por 66-6) que fez passar pela temível oposição, obra de duas penalidades convertidas pelo pé de Raquel Kochhann. “Apenas fiz os pontapés, toda a equipa trabalhou no duro para esses pontos”, consumou a média de abertura, avisando quem a quisesse escutar: “Se não somos - por enquanto - muito habilidosas, temos muito coração para compensar. E deixamos tudo em campo.”

Sam Mellish

As brasileiras muito sofreram com Aseza Hele, tanque de 91 quilos, solicitada sem cerimónias pelas sul-africanas em qualquer aproximação aos postes. A número 8 marcou três ensaios, como Desiree Miller, ponta australiana com passado na ginástica, fez contra a Samoa, além de Francesca McGhie frente a Gales, ela uma antiga bailarina e confidente de que, em 2023, quando se estreou pela Escócia, “não sabia bem como jogar râguebi”. À sua semelhança, a oval feminina está a dar pulos gigantes no seu crescimento, mas sustentados, atentos ao tamanho de cada perna que estica.

Os oito estádios do Mundial são humildes nas assoalhadas, escolhidos com parcimónia e sem apetites de grandeza nas suas costuras para as encher, dentro das possibilidades, com o crescente interesse do público: descontando o gigante anfiteatro de Twickenham, só as arenas de Brighton e Sunderland superam os 30 mil lugares de capacidade. Na véspera do arranque da prova, na última sexta-feira, 375 mil dos 470 mil bilhetes disponíveis já estão vendidos. Em 2017, quando a Inglaterra jogou e perdeu a final contra a Nova Zelândia, em Belfast, cerca de 17 mil pessoas estiveram nas bancadas.

Oito anos volvidos, o râguebi de placagens e corridas feitas por mulheres ainda padece do desequilíbrio entre nações de primeiro plano e as que vêm no encalço, algo gritante, porém similar, mesmo se não com tantas equipas, ao que há mais tempos se constata no masculino. Nas nove edições anteriores do Campeonato do Mundo, só inglesas e neozelandesas venceram a competição, pouco abonatório facto como indicar que nestes oito primeiros jogos, cinco equivaleram a atropelamentos. Mas este Mundial já bateu e vai bater recordes. E para primeira amostra, o râguebi jogado foi espetacular nas vitoriosas e cativante nas derrotadas.