
“O mar, o sal e o sol sempre andaram de mãos dadas.” Pensando nesse cruzamento de mundos, que José Vila associava na obra “Coisas da Terra e do Mar, Sabores da Cozinha Algarvia”, entende-se melhor a longevidade de pratos como os “Carapaus alimados”.
Perdem-se no tempo as experiências com a salga e a secagem do peixe, métodos de conservação essenciais na ausência de frigorífico. O sal ajudava a preservar o peixe durante as “longas horas de deslocação que mediavam entre o litoral e a serra”, escreveu José Vila. Quando vinha o mau tempo ou durante o defeso da sardinha, “recorria-se à ria, ao peixe salgado ou seco, também às papas de milho (Xarém) e à comida de panela”.
A antropóloga Ana Ramos, do Museu de Portimão, desenvolveu um trabalho junto de uma comunidade piscatória de Alvor, onde “havia muito a tradição” da salga do peixe. “Diziam que o compravam, arranjavam, salgavam e transportavam para terras mais distantes do litoral, como a serra de Monchique e o Barrocal”, conta. Assim se “cristalizou” o costume da salga, que chegou aos nossos dias e ainda participa de receituário diverso, como os “Carapaus alimados”.
Amigo de sempre de José Vila, com quem fundou, em 1981, a mítica Adega Vila Lisa, na Mexilhoeira Grande, em Portimão, José Lisa diz que este prato se enraíza na “economia de subsistência”. O carapau sobrante, que não ia para a grelha, era salgado e comia-se cozido no dia seguinte. “Era uma questão de saber aproveitar as coisas, incluindo o pão duro, que ninguém atirava fora: com ele faziam-se migas, açorda ou arjamolho”, ilustra.
“Eram formas de aproveitamento. As pessoas tinham pouco e havia que o conservar e fazer render”, acrescenta Marta Charneco, do restaurante O Charneco, outro santuário de sabores regionais. Face à abundância do carapau e ao preço baixo, “os pescadores apanhavam-nos imenso e podiam trazê-los para casa para alimentar a família”, acrescenta o chef João Oliveira, do premiado restaurante Vista, na praia da Rocha. “Mais do que tradição”, os “Carapaus alimados” representam “a cultura e identidade do Algarve”, realça.
Segredos da preparação
No dia anterior compram-se carapaus frescos, retira-se-lhes a cabeça e as tripas e lavam-se. Cobrem-se e enche-se a barriga com sal, o que torna a carne “mais rija”. Dispõem-se em camadas de peixe e sal, repousando até ao dia seguinte. De manhã, são lavados e vão a cozer. “Quando puxar o rabo do carapau e ele se partir, é sinal de que está cozido”, indica José Vila, em livro. Aí começa o processo de alimar os carapaus um a um, ou seja, retirar cautelosamente peles e serrilha.
Depois de uma preparação minuciosa, já na travessa são tradicionalmente regados com azeite, vinagre e pedacinhos de alho, embora o tempero varie: há quem coloque cebola, salsa picada, sumo de limão, orégãos ou tomate, por exemplo. Podem servir a solo, como petisco, ou na companhia de batata nova cozida ou batata-doce de Aljezur.
Onde se comem os melhores “Carapaus alimados”?
Taberna da Maré
Durante o verão, na Taberna da Maré, servem-se entre seis e oito quilos de “Carapaus alimados” (€13,50) por dia. Deve ser peixe “fresquinho, da manhã”, indica o proprietário, Zeca Pinota. A confeção segue os preceitos tradicionais. Vende-se muito como entrada, sem acompanhamento, mas também se aprecia como prato principal, acompanhando batata nova cozida ou batata-doce de Aljezur.
Travessa da Barca, 9, Portimão. Tel. 282414614
Adega Vila Lisa
Nesta casa de sabores algarvios genuínos, os carapaus alimados integram por vezes o menu (€40) composto por quatro entradas, quatro sugestões principais, sobremesa, café e digestivos. No inverno, levam um fio de azeite, alho em lasca e podem servir com batata-doce de Aljezur. No verão, recupera-se uma antiga receita de família: aos carapaus juntam-se tomate da época “picado de forma desordenada”, batata nova cozida, cortada aos pedaços, tiras de cebola, azeite, vinagre e bastantes orégãos. “Mistura-se tudo com o carapau e dá uma salada que é uma coisa do outro mundo!”, assegura o proprietário da Adega Vila Lisa, José Lisa. Fundado em 1981, o restaurante encanta ao manter-se fiel à simplicidade do conceito: o prazer da comida e do convívio à mesa, ajudado pela configuração do espaço. “As pessoas sentam-se ao lado umas das outras, sem se conhecerem. Com o fluir do jantar, metem conversa e criam amizades. Queríamos fazer da refeição e da mesa um encontro de felicidade, sem wifi”, explica José Lisa.
Rua Francisco Bívar, Mexilhoeira Grande. Tel. 282968478
Tiago’s Restaurante
Sempre muito requisitados, Ilda Tiago não consegue fazer com que sobrem “Carapaus alimados” (€12). Esta especialidade regional serve à quarta-feira e a confeção “requer muito cuidado” em todas as fases, para os exemplares “não se partirem”. São necessárias duas horas, de pé, para alimar cerca de 8 kg de carapaus. Regam-se depois com azeite e limão e adicionam-se salsa e alhos picados “miudinhos”. Neste caso, o acompanhamento é batata-doce assada no forno e ainda salada mista com pimento assado.
Rua Principal, 40, Aldeia das Sobreiras. Tel. 282423491
O Charneco
A comida regional norteia o fogão desta casa. A refeição no restaurante O Charneco é exclusivamente servida em menu (€38) que inclui cinco entradas, dois pratos principais, sobremesa, bebidas da casa, café e digestivo. Servidos no verão, os ”Carapaus alimados” são “um dos pratos icónicos do Algarve”, considera a proprietária e cozinheira, Maria Charneco. Explicações dadas na cozinha enquanto se prepara para cozer e alimar os carapaus, depois da salga que deixou a carne mais “rija”. Chegam à mesa escalados, com azeite, alho laminado e vinagre, cebola, tomate rosa e orégãos.
Rua Joaquim Manuel Charneco, 3, Estômbar. Tel. 282431113
Cervejaria Ferradura
Quando está a alimar os carapaus, Helena Lopes consegue tirar a espinha “praticamente toda”, além da pele. Aos temperos habituais, azeite, vinagre e sal, adiciona salsa. E fica “um pitéu”... Se o cliente pedir, coloca cebola. Na Cervejaria Ferradura, os “Carapaus alimados” (€10) servem como petisco, mas também dá para acompanhar com tomate. “É um prato que dá muito trabalho e às vezes não compensa, mas gosto de fazer”, garante Helena.
Rua Primeiro de Maio, 26-A, Lagos. Tel. 961650294
Restaurante Alhinho Algarve
O processo “dá muito trabalho”, mas os “Carapaus alimados” (€9,50) saem muito como petisco. Vão para a mesa só com pão caseiro, para molhar na travessa. Além da marinada, com “bastante limão espremido, bom azeite e alho laminado”, os carapaus levam cebola roxa, salsa e limão, explica o cozinheiro do Restaurante Alhinho Algarve, Diogo Almeida.
Avenida da Fonte Santa, Quarteira. Tel. 915055532
Tico Tico Algarve
Mesmo com a casa cheia, o serviço responde com assertividade. A demanda é seduzida por propostas vistosas e referências típicas, como as “Ovas de choco”, “Xerém de conquilhas e camarão”, “Carapaus alimados” (€10) ou “Lulinhas frescas à algarvia” (€19). “Não podemos perder os pratos tradicionais”, defende a proprietária, Fernanda Leal. Também há amêijoas, lingueirão, percebes e carabineiros, “Açorda de marisco”, arrozes e peixe fresco.
Avenida Infante de Sagres, Edifício Elegante, bloco C, Quarteira. Tel. 935763684
Restaurante Alcatruz
Está aberto há 40 anos e desde o primeiro dia que a especialidade é o “Arroz de marisco” (€42), que gera verdadeiras romarias em direção ao Alcatruz, em Santa Luzia, destino muito procurado pelo polvo. Na lista de petiscos aconselham-se os “Bombons de choco”, as “Ovas de polvo”, o “Peixe-rei”, a “Estupeta de atum” e, claro, os “Carapaus alimados” (€6). Sem censura, assumem na ementa os “Colhões de choco” (€15), prato típico da região, também conhecido como ovas de choco fritas. A fachada do restaurante é à algarvia, branca e azul.
Rua João António Chagas Ferreira, 46, Santa Luzia. Tel. 281381092
Os “Carapaus alimados” são uma das 50 receitas do guia “Restaurantes, Pratos e Produtos Regionais”.