A mala aberta no corredor

A mala ficou aberta no meio da sala, como quem não sabe se fecha ou se desiste. Marta e Luís, ambos 31 anos, contaram os meses até ao despejo, a conta certa para uma renda que subiu mais 300 euros “por atualização do mercado”. Procuraram casa em Lisboa, Almada, Barreiro, Setúbal, e acabaram a 70 minutos do emprego, num T1 que come metade do salário de cada um. À noite, entre caixas, decidiram adiar o segundo filho.

“É como se a nossa vida tivesse ficado suspensa. A cidade onde crescemos deixou de caber no nosso orçamento”, dizem.

Não são exceção. São o retrato de uma geração inteira.

O aperto em números

O país viveu, em 2024, a maior escalada dos preços desde a crise financeira. O preço mediano de venda atingiu 1.870 €/m² no 4.º trimestre — +15,5% face ao ano anterior e +10,3% no total do ano.

As rendas também dispararam: 8,22 €/m² no 1.º trimestre de 2025, mais 10% do que em 2024, em 23.417 novos contratos.

Sinais vitais da crise

  • Preço mediano de venda (Q4 2024): 1.870 €/m² (+15,5%).
  • Variação anual: +10,3%.
  • Renda mediana novos contratos (Q1 2025): 8,22 €/m² (+10%).
  • Contratos de arrendamento no trimestre: 23.417.
  • Edifícios licenciados em 2024: 25.470 (+7,2%).
    Fonte: INE

Democracia a crédito

A taxa de sobrecarga habitacional — quem gasta mais de 40% do rendimento líquido em casa — atingiu 8% da população urbana em 2024. Entre jovens e arrendatários, o número é bem mais alto.

“A habitação deixou de ser escolha. É sobrevivência. Pagamos primeiro a casa e depois pensamos na vida.”
Marta, 31 anos, arrendatária

A democracia não se mede só em votos. Mede-se em metros quadrados habitáveis. Quando uma geração não consegue viver onde trabalha, estuda ou ama, o país falha no essencial.

O pano de fundo: políticas que não chegam

Em 2023, o Governo aprovou o pacote Mais Habitação (Lei n.º 56/2023): limites ao Alojamento Local, benefícios fiscais para arrendamento acessível, travão aos Vistos Gold imobiliários. Mas os resultados foram lentos.

O fim dos Vistos Gold trouxe algum alívio nos segmentos de luxo, mas não chegou às famílias de classe média. E o arrendamento acessível, dependente de incentivos fiscais, ficou aquém do necessário.

“Não basta limitar o Alojamento Local. É preciso reconverter essas casas para arrendamento acessível, com regras simples e claras”, sublinha um urbanista ouvido pelo Expresso.

Portugal e a Europa

  • Entre 2010 e 2022, preços das casas na UE subiram 47%, rendas 18%.
  • Em Portugal, a valorização foi mais acentuada do que os salários.
  • Jovens portugueses saem de casa dos pais, em média, aos 30 anos (média UE: 27).
  • A taxa de sobrecarga habitacional urbana em Portugal é de 8% (Eurostat, 2024).

A vida nos limites da cidade

O efeito é visível. Professores que dormem a 80 km da escola. Enfermeiros que passam três horas diárias em transportes. Jovens que dividem quartos a 350 € em Lisboa. A cidade expulsa quem a faz viver.

“A cidade sem jovens e sem classes médias fica mais cara, menos criativa e mais insegura.”
Urbanista, Lisboa

O silêncio dos números e das ruas

A oferta até cresceu: mais 25.470 edifícios licenciados em 2024. Mas a construção destina-se sobretudo a segmentos médios-altos e ao turismo. O arrendamento de longa duração continua escasso, os bairros sociais estagnaram e a classe média ficou num limbo: demasiado pobre para comprar, demasiado “rica” para aceder a apoio público.

O resultado é uma erosão lenta, mas profunda, da coesão social.

Quatro saídas possíveis

  1. Oferta em escala e a preço controlado – mobilizar solo público com cláusulas de preço-teto por 30 anos.
  2. Rendas estáveis – contratos de 7 a 10 anos, com garantias públicas para senhorios.
  3. Reconversão do AL – crédito bonificado e obrigação de arrendar a preços abaixo do mercado.
  4. Dados em tempo real – plataforma nacional de monitorização mensal, com avaliações independentes.

O futuro adiado

Marta e Luís arrumaram a mala. O filho adormeceu no banco de trás, no trânsito da A2, enquanto Lisboa ficava a brilhar ao longe.

A democracia mede-se em eleições livres, tribunais independentes e imprensa vigilante. Mas mede-se também em metros quadrados habitáveis.

Se uma geração inteira não encontra casa, o país não está apenas a falhar. Está a perder-se.