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Um gato que não funciona

Há mistérios que não se deixam abrir com chave de fendas: um gato é um desses mistérios. Como a flor descrita pela botânica não descreve a flor que alguém recebeu por paixão.
Um gato que não funciona
Copilot

Há quem se sinta tentado a explicar a vida usando fórmulas simples, apesar de a vida ser avessa a reducionismos. Uma criança que desmonta um brinquedo para tentar perceber o mecanismo interno serve de analogia para procedimentos científicos clássicos, levando a algumas críticas mais ou menos apaixonadas, algumas perfeitamente adequadas, outras demasiado líricas.

Lemos, em The salmon of doubt, de Douglas Adams: “a razão por que não tínhamos ideia de como funcionavam os gatos era porque, desde Newton, tínhamos agido segundo o princípio muito simples de que, para ver como as coisas funcionam, bastava desmontá-las. Se alguém tentar desmontar um gato para ver como ele funciona, a primeira coisa que terá nas mãos é um gato que já não funciona.” Ou seja, a vida tem um nível de complexidade que não é desvelado por dissecação reducionista. Há mistérios que não se deixam abrir com chave de fendas: um gato é um desses mistérios.

Adams disse ainda: “A beleza não tem de ser sobre alguma coisa. Um vaso é sobre o quê? Um pôr-do-sol ou uma flor são sobre o quê? Sobre o que é, nesse sentido, o Vigésimo Terceiro Concerto para Piano de Mozart? Diz-se que toda a arte tende para a condição da música, e a música não é sobre coisa alguma — a não ser que seja má música. Uma fuga de Bach, pelo contrário, é pura forma, beleza e divertimento, e não estou certo de que existam muitas coisas, em termos de arte e realização humana, que vão além de uma fuga de Bach.” A beleza, portanto, não se reduz a uma explicação. Porém, o que de facto verificamos é que esse tipo de abordagem científica tem funcionado — e continua a funcionar — muito bem. Talvez um gato que funciona seja mais misterioso do que um brinquedo desmontado, mas foi a abrir corpos que a ciência descobriu a anatomia interna, os órgãos, os sistemas vitais, e pôde fundar a medicina moderna. Talvez uma fuga de Bach vá mais longe, sem explicar nada, do que qualquer tratado, embora a pessoa que está prestes a entrar na sala de operações deva dar graças pela quantidade de corpos que, tendo deixado de funcionar, foram abertos.

Existem lacunas, claro. O poeta Aimé Césaire, acertadamente, defendia que a arte deveria preencher esses hiatos que não fazem parte do domínio da ciência. A flor descrita pela botânica não descreve a flor que alguém recebeu por paixão. No entanto, nestas disputas há sempre alguém a empunhar um estereótipo qualquer, a ir longe demais e a cair no ridículo. Richard Feynman — cientista que também se dedicava às artes —, numa entrevista (transcrita no livro The pleasure of finding things out), contou o seguinte episódio, em que um amigo artista se aproximou dele erguendo uma flor: “‘Olha como isto é belo. Eu, como artista, consigo ver a beleza; tu, como cientista, desmontas tudo e ficas com algo aborrecido.’ Eu acho-o um pouco tonto. Primeiro, porque a beleza que ele vê está disponível para todos — e para mim também, mesmo que eu não seja tão refinado esteticamente. Mas, ao mesmo tempo, eu vejo muito mais do que ele vê. Posso imaginar as células, as acções complicadas dentro delas, que também têm beleza. Não é apenas a beleza numa dimensão de um centímetro; há também beleza em dimensões menores, na estrutura interna, nos processos. O facto de as cores da flor terem evoluído para atrair insectos é interessante — significa que os insectos conseguem ver a cor. Isso acrescenta uma pergunta: existirá também neles um sentido estético? Qual a razão para ser estético? Toda uma série de questões que mostram que o conhecimento científico só acrescenta excitação, mistério e admiração a uma flor. Só acrescenta; não percebo como pode subtrair”.

De facto, a chave é essa: acrescenta. E mais: é recíproco. O poeta Paul Claudel, nos seus diários, conta o seguinte caso protagonizado por Claude Bernard, um dos maiores fisiologistas franceses do século XIX e um dos fundadores da medicina experimental moderna: «Um dia, Claude Bernard, no anfiteatro de medicina, passando ao lado de vísceras humanas, observa que um órgão atrai particularmente as moscas: é o fígado. 'Deve ter açúcar lá dentro', pensa ele. E descobre assim a função glicogénica do fígado.

É um processo de associação de ideias inteiramente análogo ao da poesia […] A essência é a mesma. O que demonstra que a fonte do pensamento científico não é a razão, mas a verificação exacta de uma associação originalmente fornecida pela imaginação.»

Ou seja, a poesia descobriu primeiro o que a razão iria demonstrar depois, ao abrir um fígado que já não funcionava.

Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico

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