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Um anel de brilhantes

Pode ser que a criação seja tanto o mecanismo de descobrir algo brilhante quanto tornar algo brilhante, sendo apenas momentos diferentes do processo.
Um anel de brilhantes
DALL-E

Numa conversa recente com uma escritora colombiana, Lina María Parra Ochoa, ao lhe ser perguntado sobre o seu processo criativo, usou, mais do que uma vez, a ideia de que a criação parte da descoberta de brilho ou de coisas brilhantes no mundo observado, interior ou exterior. A criação seria assim uma espécie de garimpo, em que o criador extrairia a sua matéria-prima do granito da realidade. A imagem é sedutora. Há, porém, um processo oposto. Temos prazer em adornar com mil perfeições quem amamos. Escreveu Stendhal no ensaio D lamour, que apesar de ser dedicado ao amor, podemos usar também como processo criativo: “Nas minas de sal de Salzburgo, atira-se para as profundezas abandonadas da mina um ramo de árvore que o Inverno desfolhou; dois ou três meses depois, retira-se esse ramo coberto de cristalizações brilhantes: os ramos mais pequenos, que não são mais grossos do que a pata de um chapim, estão cobertos por uma infinidade de diamantes móveis e ofuscantes; já não se consegue reconhecer o ramo original.

Aquilo a que chamo cristalização é a operação do espírito que, a partir de tudo quanto lhe é apresentado, descobre que o ser amado possui novas perfeições.”

O processo não é propriamente novidade: “Deixai a cabeça de um amante trabalhar durante vinte e quatro horas, e eis o que encontrareis.” Mas gosto da forma como Stendhal o baptizou.

Pode ser que a criação seja tanto o mecanismo de descobrir algo brilhante quanto tornar algo brilhante, sendo apenas momentos diferentes do processo. No fundo, é a atenção que resolve o mesmo mecanismo: a descoberta tem o poder de fazer brilhar, a atenção é luz, depois é necessário torná-la ainda mais luminosa. Quando uma pessoa se apaixona (descobre um brilhante) e envolve de cristais essa pessoa ou objecto ou ideia é a mesma coisa que fazer um poema, descobrir algo no mundo e elevá-lo a arte. Ter sentimentos, como oposto à indiferença, é o início do acto criativo. Mais, por vezes o brilho pode ser ódio e desconforto e não enamoramento (mas não deixa de ser atenção). Também isso move a criação. Também há brilho no mal, no sentido que nos envolve e nos convoca e nos chama a atenção. O estereótipo de beleza não serve à arte, pois o artista é tocado por inúmeras formas de expressão.

Voltando ao brilho mais lisonjeiro. Talvez seja por isso que oferecemos anéis com brilhantes de todo o tipo: a contraparte física e literal dessa ideia de Stendhal. Cristalizar alguém.

Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico

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