
Tudo aponta para que Vladimir Putin esteja a procurar esquivar-se às prometidas sanções e a tentar negociar o que não é sequer, de facto, seu. No fundo, aquilo que nem mesmo pela força das armas Putin foi capaz de alcançar após três anos e meio de insana crueldade e milhares de indescritíveis crimes de guerra. Nada mais nada menos do que o efetivo controlo sobre o Leste ucraniano, o dos Oblasts de Luhansk e Donetsk.
Se Donald Trump, na ânsia de ficar na história como o grande arquiteto da paz dos nossos tempos e putativo candidato ao Prémio Nobel da Paz, cair na fácil tentação de aceitar os termos férreos de Putin, estaremos evidentemente perante uma insensata quasi-repetição do Acordo de Munique de 1938, quando o primeiro-ministro britânico Chamberlain concedeu a Adolf Hitler a anexação dos Sudetas – uma importante região da então Checoslováquia. Em troca, recebeu apenas promessas de uma "paz para o nosso tempo" como ele próprio referiu as quais, pouco tempo depois, se vieram a revelar exatamente como tal: meras promessas. Sem margem para quaisquer dúvidas ou incertezas que nestes momentos que estamos a viver, decisivos para o futuro da Ucrânia e da própria Europa — a nossa memória terá inevitavelmente de lançar mão, trazendo a palco os célebres, mas igualmente inúteis acordos de Munique de 1938, celebrados por Neville Chamberlain, o já referido primeiro-ministro britânico, Édouard Daladier, primeiro-ministro francês e Benito Mussolini, “Il Duce”, primeiro-ministro italiano. Todos eles tentando encontrar uma solução para apaziguar a voragem de Adolf Hitler, na antecâmara da Segunda Guerra Mundial. O resultado, como sabemos, foi o infeliz desastre que conhecemos: o mais sangrento conflito que a humanidade já viveu. Hitler, como também hoje Putin queria muito mais. Desejando apaziguar o infrator, o resultado foi uma paz precária que conduziu a mais guerra e a mais expansionismo.
A vontade de chegar rapidamente à paz, sem cuidar das consequências e a qualquer preço, parece estar a repetir-se. De novo se equaciona a possibilidade de entabular conversações, ouvindo apenas uma das partes, como se a outra não fosse igualmente importante. A triste verdade é que no outono de 1938 a Checoslováquia também não foi ouvida, porque certamente se oporia a uma tal concessão. Era preciso chegar à paz, nem que para tal fosse necessário sacrificar a Checoslováquia.
O que aconteceu foi uma “Paz” a um qualquer preço. Os Sudetas eram um território internacionalmente reconhecido como seu e do qual se viu espoliada sem ter sido sequer consultada. Hoje e porque aprender com os erros do passado mais do que uma necessidade se afigura uma obrigação, esperemos que a Ucrânia agredida e os seus aliados europeus sejam devidamente considerados, sob pena de, não o fazendo, se tornar a cometer um erro de consequências potencialmente catastróficas.
É bem verdade que a História não se repete, mas muitas vezes rima, como terá escrito Mark Twain – aprendamos por isso a não repetir os erros do passado. A humanidade sempre foi propensa a querer viver em paz. Infelizmente, por vezes, a enorme vontade de a alcançar acabou por se sobrepor ao próprio preço a pagar por ela, esquecendo a justeza das condições envolvidas no processo. Uma paz precária e injusta nunca conduziu a resultados benévolos e duradouros. Sempre se revelou efémera.
Todos obviamente desejamos terminar esta guerra que persiste em continuar a fazer o seu terrível caminho na Europa. Queremos pôr fim à matança, como Donald Trump gosta de afirmar e ninguém mais do que os ucranianos deseja isso mesmo. Tenhamos, porém, de uma vez por todas, a noção clara de que uma paz precária, injusta, atentatória da ordem internacional liberal baseada em regras, construída sobre os escombros e sobre os muitos milhões de mortos resultantes da Segunda Guerra Mundial, não conduzirá seguramente a uma paz justa nem tão pouco duradoura. Uma paz podre que conterá potencialmente, em si mesma, o gérmen de um novo quiçá mais intenso e mortífero conflito. O drama de 1938 assim foi e continuará a ser, hoje e no futuro.
Como Martin Luther King tanto gostava de referir: "A verdadeira paz não é somente a ausência de tensão, é a presença de justiça". Luther King Jr. Defendeu bem que uma paz genuína envolve não apenas a ausência de conflitos, mas a existência efetiva da justiça, da equidade e do fim da opressão. Que a Ucrânia não sirva de pretexto para os desígnios egocêntricos de dois atores que parecem colocar em primeiro plano os seus próprios objetivos em detrimento do bem deste país, da Europa e da própria humanidade. Em boa verdade, muito embora possa subsistir a possibilidade da ocorrência de uma "nova Munique", no caso da Ucrânia esse risco será inferior. Ao invés da Checoslováquia, que não foi tida nem achada em 1938, parece ser pouco provável que a voz da Ucrânia deixe de ser ouvida e que Vlodomyr Zelensky concorde com um acordo aviltante e assolador que Trump, em conjunto com Putin, no Alasca, possam vir a engendrar. Em abono da verdade, o presidente dos EUA, ao apressar este encontro com Putin, previsto para esta sexta-feira, arrisca converter-se numa presa fácil das habituais manipulações do senhor do Kremlin.
Irá Donald Trump ainda a tempo de negociar numa posição de verdadeira força e inverter o rumo que o jogo parece estar a tomar? Eu diria que sim, bastando para tal ter a coragem de se colocar definitivamente do lado certo da história, fortalecendo a capacidade de combate da Ucrânia, fornecendo-lhe as armas que ela necessita sem restrições de emprego. Afinal temos medo de quê? Das ameaças nucleares de Medvedev, de Putin ou de uma qualquer outra caixa de ressonância do Kremlin a quem o presidente russo incumba de vociferar ameaças mais ou menos veladas? A lógica da Destruição Mútua Assegurada (MAD) continuará a funcionar, como o fez durante a Guerra Fria. E que se saiba, para os lados de Moscovo as tendências de um suicídio em massa não se vislumbram. Estejamos, pois, tranquilos.
Por fim, e de capital importância, aplicando mais amplas sanções à Rússia e afirmando a concordância de princípio quanto à integração da Ucrânia na NATO. Se Trump ambiciona ficar na História como o homem que conseguiu por termo a esta tremenda contenda que já ceifou vidas sem conta, este será o caminho mais direto e reto para o alcançar. Medidas como estas criariam uma base sólida de uma diplomacia baseada na força e compeliriam Putin ao diálogo, produzindo uma plataforma para negociações sérias, sem quaisquer truques ou tentativas de protelar o inevitável. A continuar na atual toada, em vez disso, Donald Trump está de forma manifesta a dar espaço de manobra a Vladimir Putin; e, no fundo, a esbanjar a oportunidade de terminar esta guerra de uma forma justa e duradoura, não beneficiando o infrator.
Terá sido a Ucrânia que atacou a Federação Russa? Foi a NATO que se aproximou “perigosamente” das suas fronteiras? Terá sido a Aliança Atlântica que decidiu integrar a Ucrânia no seu seio? Não. Muito embora Putin insista em retorquir afirmativamente a estas três questões, a resposta a todas ela é obviamente negativa. Não, repito, não foi a Ucrânia que atacou a Rússia, não foi a NATO que encetou unilateralmente negociações tendo em vista acolher este país no seu seio, assim como não foi a NATO que resolveu integrar contra vontade a Finlândia e a Suécia que nela entraram. Foram resultados de decisões soberanas desses mesmos países e que só a eles dizem respeito. Como afirma e com razão a primeira-ministra italiana Georgia Meloni, o formato mais simples e eficaz de proporcionar garantias de segurança à Ucrânia é o abrir-lhe definitivamente as portas da NATO e isso será algo que Putin terá de aceitar. Apenas aos ucranianos compete tomar tal decisão, na sua qualidade de cidadãos de um Estado soberano, livre e independente. E esta é uma das exigências que Donald Trump, como presidente do país mais poderoso do mundo, deverá impor a Putin no intuito de alcançar a tal paz justa e duradoura, tão desejada e merecida pelo povo ucraniano. Irá ele fazê-lo? Esperemos que sim. Os perigos de equacionar soluções para este conflito que passem ao lado da Carta das Nações Unidas e do Direito Internacional como um todo, configuram uma verdadeira Caixa de Pandora, que uma vez aberta poderá produzir um verdadeiro abalo telúrico na Ordem Mundial periclitante e com réplicas devastadoras no nosso futuro. Coletivo. Que erros crassos não se repitam.
Major General//Escreve semanalmente no SAPO, à sexta-feira