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Logística russa sob ataque ucraniano

A guerra eletrónica e a guerra cibernética fizeram extravasar este conflito muito para além das fronteiras físicas da Ucrânia, procurando interferir em muitos sistemas essenciais ao funcionamento regular das democracias ocidentais.
Logística russa sob ataque ucraniano
Créditos: Ed Ram/For The Washington Post

Na Ucrânia, a guerra ao longo da sua extensíssima linha de contacto tem sofrido algumas alterações, porém sem modificar significativamente os ventos da fortuna de qualquer um dos contendores.  Muito mais do que a uma guerra convencional, temos vindo a assistir a algo distinto, a uma combinação das ações de uma guerra clássica com taxas de atrição anormalmente elevadas, matizada por elementos típicos de um conflito híbrido.

A incorporação de alta tecnologia sobretudo correlacionada com a automação do campo de batalha nas suas dimensões terrestre, aérea, naval e aeroespacial, tem vindo a proporcionar inovações a um ritmo verdadeiramente vertiginoso.

A guerra eletrónica e a guerra cibernética fizeram extravasar este conflito muito para além das fronteiras físicas da Ucrânia, procurando interferir em muitos sistemas essenciais ao funcionamento regular das democracias ocidentais. Em boa verdade nenhum dos países da Europa Ocidental ficou imune às ações massivas e contínuas de guerra híbrida perpetradas pelos agentes ao serviço de Moscovo. As tentativas de influenciar o nosso modo de vida, buscando inclusivamente afetar diretamente os resultados eleitorais e, por conseguinte, visando levar ao poder governos menos dispostos a apoiar a causa de uma Ucrânia livre e independente têm vindo a ser uma constante.  Disso já não restam quaisquer dúvidas. As evidências são irrefutáveis.

Do ponto de vista estratégico, este tem sido até à presente data e em essência, um conflito de características assimétricas. Todavia, hoje menos vincadas do que no seu dealbar. A Rússia possui inegavelmente maior potencial estratégico, mas a Ucrânia tem contado desde o início com o apoio ocidental, que se tem revelado vital nas mais diversas áreas, particularmente na defesa dos céus ucranianos. Sistemas modernos desta natureza têm vindo a revelar-se fundamentais na proteção das principais urbes ucranianas contra a fúria diária dos mísseis russos que atacam sem qualquer tipo de constrangimento objetivos civis e militares, cometendo as maiores atrocidades, consubstanciadas em horrendos crimes de guerra e também contra a humanidade. Para a Federação Russa, os preceitos do Direito Internacional Humanitário constituem verdadeira “letra morta”. O terror tem sido a sua arma de eleição e tudo aponta para que assim continue.

A Ucrânia tem estado sob intensa pressão ao longo destes três anos e meio. As indecisões da nova administração americana, os atrasos na consumação dos prometidos apoios ocidentais e as dificuldades em financiar a produção doméstica do seu próprio complexo militar industrial têm sido os principais fatores. Mas também a Federação Russa e os seus acólitos, entenda-se o Irão, a Coreia do Norte e a China, ou mesmo agora a Índia, estão sob acrescida pressão devido à ameaça da imposição das projetadas sanções primárias e secundárias. Como afirmei em artigo anterior não há guerra que se ganhe sem uma economia saudável e esta não será certamente uma exceção. A sorte da guerra joga-se nos dias de hoje e cada vez mais nos tabuleiros da economia, na inovação tecnológica e na capacidade militar industrial de cada contendor. É uma guerra de sustentação logística, de resiliência financeira e de capacidade de encaixe psicológico das populações apoiantes. Em suma, ganha quem tiver mais aptidão para apoiar por mais tempo uma guerra de elevado desgaste. Por diferentes razões, nenhum dos lados se pode dar ao luxo de perder. Aquele que ficar isolado e privado de recursos estará inexoravelmente condenado ao fracasso. Capitulará.

Mas, mais uma vez, a condução das operações militares por parte de Kiev parece estar verdadeiramente a mudar. A Ucrânia está cada vez mais próxima de uma guerra simétrica. Apresenta finalmente capacidade de atingir a profundidade do adversário, os seus órgãos e as suas artérias logísticas. A guerra começa a destruir linhas de caminho-de-ferro. Neutraliza com impressionante eficácia radares de deteção de curto, médio e mesmo longo alcances.

Vale a pena determo-nos com algum detalhe numa das mais brilhantes operações levadas a efeito pela Ucrânia nos últimos tempos, a denominada operação Deep Waves. Em 27 de julho passado, forças ucranianas atacam o território da Federação Russa. Radares foram inativados, as cerimónias do Dia da Marinha Russa foram canceladas. 198 drones atacaram Moscovo. A guerra ultrapassou manifestamente a linha da frente. As ações conduzidas pela Ucrânia tiveram uma influência consistente nas suas frentes Sul, Leste e Nordeste. Desta vez, os militares ucranianos não escolheram um alvo propriamente dito, foi selecionado todo um sistema: a capacidade de sustentação logística da Federação Russa. A Ucrânia conseguiu bloquear temporariamente as suas linhas de abastecimento. Comboios carregando munições foram parados e não chegaram ao seu destino. Radares foram comprometidos ou destruídos. No Oblast de Donetsk, os obuses diminuíram o ritmo dos disparos por ausência de reabastecimento de munições. Os carros de combate no Oblast de Zaporizhzhia não se moveram e os depósitos de munições enterrados na região de Belgorod foram severamente alvejados.

Com esta operação a guerra acabara de mudar de feição. Deixara de ser apenas a soma de batalhas e empenhamentos táticos para defender ou mesmo retomar terreno na linha de confrontação e passara a ser o somatório de um conjunto de ações visando a retaguarda do território russo por forma a neutralizar ou no mínimo desarticular as suas ações de sustentação logística. Nessa noite com invulgar precisão e sincronia, vias férreas, terminal a terminal, foram severamente atingidas pelos drones ucranianos. A finalidade foi fazer colapsar o fluxo de reabastecimento. Perto da meia noite de 27 de julho, distorções de sinal foram visualizadas nas redes de radar russas. Essas mudanças, inicialmente avaliadas como anomalias de baixa prioridade acionaram sistemas de alerta central. Alguns minutos mais tarde, pouco depois da meia noite iniciava-se a dita operação Deep Waves, atacando em simultâneo cinco regiões distintas da Rússia. Briank, Smolensk, Kaluga, Volgograd e S. Petersburgo. Em Briansk foram usados 36 drones. Em Smolensk 21. Em Kaluga, dez. Em Volgograd 14 drones iludiram a capacidade de deteção dos radares russos, antecipando-se à reação das suas defesas aéreas. Entre os alvos em Volgograd, uma estação de distribuição de energia foi prontamente desativada, provocando cortes de fornecimento elétrico ao nível regional. O aeródromo militar de manobra de Kaluga foi encerrado.  Todavia, o efeito de maior alcance foi conseguido em S. Petersburgo. Pela primeira vez na história, as tradicionais comemorações do Dia da Marinha Russa seriam prontamente canceladas por razões de segurança.  O Ministério da Defesa da Ucrânia declarou que a operação tinha como desígnio não apenas alvos estratégicos, mas também minar a perceção de invulnerabilidade da própria Federação Russa e das suas gentes. É um rude golpe dirigido a esse sentimento de invulnerabilidade interna da Rússia.

A Ucrânia acabara de deslocar, pela primeira vez, o centro de gravidade da guerra para o círculo interno de Moscovo. Não foi somente uma ação militar, foi verdadeira pressão psicológica. A toda poderosa Rússia estava a ser obrigada a anular uma importante efeméride praticamente nas cercanias da sua capital, o que corresponde a uma falha profunda do seu aparelho securitário e por conseguinte a um ataque direto ao seu orgulho nacional. A estratégia militar da Ucrânia está a dar passos qualitativos incontestáveis, estando finalmente a ser concebida no intuito de paralisar sistemas vitais essenciais aos combates. E este é apenas o início.

Para outubro podemos esperar, no dizer do Presidente da Verkhona Rada — parlamento ucraniano — e também do seu atual ministro da Defesa, novidades muito significativas. Provavelmente, a Ucrânia começará a empregar os seus primeiros mísseis balísticos de Teatro o que lhe possibilitará, concretizar de forma ainda mais consistente novas e mais eficazes operações similares à da passada noite de 27 de julho. Mais e mais eficazes Deep Waves serão materializadas.

Major General//Escreve semanalmente no SAPO, à sexta-feira

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