
Na era da aceleração tecnológica, há poucos lugares onde o tempo parece passar tão depressa quanto nos bastidores do regulamento digital europeu. Inteligência artificial, blockchain, edge computing — os temas sucedem-se, cada vez mais complexos, cada vez mais interdependentes. Nicole Fortunato, Associada Coordenadora da sociedade de advogados Morais Leitão, com uma longa tradição no tecido empresarial português, fala pausadamente. As palavras são escolhidas com precisão. Mas o seu olhar revela entusiasmo. “Sempre fui uma early adopter”, confessa com um sorriso. “Na adolescência, vibrava com os Mircs e outras inovações tecnológicas do meu tempo.” Advogada por vocação e tecnóloga por convicção. É hoje uma das especialistas mais escutadas em Portugal quando o tema é regulação tecnológica. Nesta conversa desenha com clareza o panorama regulatório europeu, aponta riscos e fragilidades, sublinha responsabilidades e propõe caminhos — tudo com uma rara combinação de lucidez jurídica e empatia tecnológica.
Do Mirc ao regulamento europeu: uma ponte improvável?
“Não sou uma engenheira frustrada”, começa por dizer. “Mas talvez uma jurista que sempre quis decifrar o que há de humano na tecnologia.” A escolha do Direito, admite, foi influenciada pela percepção de que a matemática seria um obstáculo. “Mas nunca deixei de olhar para o lado de lá.” Quando descobriu que a prática jurídica podia cruzar-se com a inovação tecnológica, o percurso profissional ganhou nova densidade. “Hoje em dia, adoro olhar para um software agreement e identificar os riscos legais. A minha função é, acima de tudo, ser uma ponte entre mundos.”
Essa ponte levou-a a atravessar o setor empresarial e regressar às sociedades de advogados, onde, diz, encontrou o equilíbrio entre diversidade de temas e exigência técnica. “As empresas precisam de soluções. A minha experiência in-house ensinou-me a ser pragmática. Quando voltei à sociedade, trouxe comigo essa urgência de resolver.”
Regulação e inovação: o jogo do gato e do rato
É aqui que a conversa entra no âmago do desafio: a velocidade da inovação e a lentidão dos reguladores. “O caso da inteligência artificial foi paradigmático”, aponta. “Em 2022, a Comissão Europeia publicou uma proposta de regulamento. Um ano depois, com o surgimento massivo dos Large Language Models, teve de a rever. Isso diz tudo.”
Para Nicole Fortunato, o caminho passa por regulamentos baseados em princípios e não em normas exaustivas. “Se quisermos legislar com detalhe, estamos sempre atrasados. É preferível apostar numa moldura de princípios gerais, que depois as autoridades reguladoras densificam com orientações, pareceres e recomendações mais ágeis.” E reforça: “Não precisamos de legislar tudo. As leis gerais já se aplicam, por exemplo, a casos de discriminação algorítmica. O que precisamos é de vigilância e capacidade de atuação.”
A lacuna que mais a inquieta? A desinformação
O tom sobe ligeiramente quando se fala dos riscos mais preocupantes da era digital. “Os deepfakes e a desinformação automatizada são hoje uma ameaça real à democracia. Manipular emoções, distorcer factos, influenciar resultados eleitorais: tudo isto está a acontecer. E aí, sim, acho que o legislador e os reguladores deviam ser mais interventivos.”
AI-Act e o novo compliance: o que muda para as empresas
Com a entrada em vigor do AI Act, Nicole Fortunato tem aconselhado empresas a adaptarem os seus processos. “O primeiro passo é mapear os sistemas de IA existentes. Depois, classificá-los: são proibidos? De alto risco? De risco limitado? É preciso perceber que há sistemas que simplesmente não podem ser utilizados no espaço europeu. Outros exigem avaliações de impacto, garantias de transparência, de não discriminação, de explicabilidade.”
Não dramatiza, mas não desvaloriza. “Isto é, na prática, um processo de compliance. As grandes empresas já estão habituadas. As PME devem preparar-se com realismo. E sobretudo, devem rever as suas políticas internas — especialmente no uso de LLMs, onde a questão da autoria é crítica.”
Empresas e advogados: ainda se chega tarde demais
Questionada sobre a maturidade das empresas portuguesas neste domínio, a resposta é clara. “Nas grandes empresas, há processos bem montados. Já nas mais pequenas, muitas vezes o recurso ao advogado só acontece quando o problema rebentou.” E acrescenta: “Há ainda a ideia de que o serviço jurídico é inacessível. Mas hoje o mercado está competitivo. Um bom aconselhamento a tempo pode evitar perdas graves.”
Defende que o papel do advogado já não é o de mero litígio. “O meu trabalho é essencialmente preventivo. Ajudo os clientes a dormir descansados.”
E-commerce, plataformas estrangeiras e a difícil aplicação da lei
Quando se aborda a questão do comércio eletrónico e das grandes plataformas não europeias, como as chinesas, Nicole Fortunato admite: “Há um problema real de enforceability. Podemos dizer que a lei se aplica, mas como a fazemos cumprir fora da jurisdição europeia?”
A solução, sugere, passa por valorizar o produto europeu. “Temos um selo de qualidade, de conformidade legal e de segurança que deve ser comunicado ao consumidor. Não podemos ficar à espera que os outros joguem com as nossas regras.”
Direito e tecnologia: o futuro é híbrido
O futuro trará mais advogados tecnólogos ou engenheiros juristas? “Ambos”, responde. “Hoje, um advogado que queira trabalhar nesta área tem de perceber o básico de programação, de arquitetura de sistemas. Eu própria tive aulas de programação no meu mestrado. E percebi que isso vai ser essencial para a sobrevivência da profissão.”
O Portugal Digital Summit: proximidade à economia real
A presença da Morais Leitão como Stage Partner no próximo Portugal Digital Summit, em outubro, não é acidental. “Queremos estar próximos da economia. O nosso compromisso é perceber onde podemos aportar valor, lado a lado com os motores da transformação.”
O papel do advogado na sociedade digital?
“Ser um facilitador. Um enabler. Um parceiro que antecipa riscos, propõe soluções e não tem medo de ser criativo. O advogado do futuro — e já do presente — tem de estar na linha da frente da inovação. Não para travá-la, mas para torná-la viável, segura e, acima de tudo, justa.”
Nicole Fortunato é mais do que uma jurista experiente. É, talvez, o exemplo do que significa ser um profissional de fronteira — alguém que conhece a linguagem da lei e compreende a gramática da tecnologia. Num mundo em transição, essa será, certamente, uma das competências mais valiosas, tornando a Morais Leitão numa das mais dotadas sociedade de advogados a prevenir problemas, para que as empresas portuguesas possam estar em conformidade na Era da Economia Digital.