Temo que muitos portugueses não tenham verdadeira noção da vastidão das áreas consumidas pelas chamas em Portugal. Grande parte vive longe do interior profundo: desconhece os seus caminhos, as suas serras, o peso da memória que nelas habita.

Caminhar na Serra da Cebola — com o Pico da Cebola, 1418 metros, como o ponto mais alto da Serra do Açor — é entrar num território onde, desde os fins do século XV, gerações inteiras cuidaram da terra como extensão da sua própria vida. É quase impossível traduzir em palavras o que se sente ao respirar o ar impregnado de resina e pinho, subir aos pinheiros para colher pinhas ou mergulhar nos poços da ribeira — fosse em São Jorge da Beira ou na anexa Vale da Cerdeira, nos tempos de escola dos anos 70, sempre em boa companhia.

O que se perde nos incêndios não são apenas hectares de floresta — perde-se identidade, memória e futuro.

As chamas não pouparam a freguesia de São Jorge: Minas da Panasqueira, Cambões, Vale da Cerdeira e Casal de Santa Teresinha. Localizada a 50 km a oeste da sede do município da Covilhã, a região ficou reduzida a um cenário de desolação. Ainda assim, o casario foi salvo graças à coragem incansável dos bombeiros e à união exemplar da comunidade. Mais uma vez, o Portugal profundo, que combateu as tropas de Napoleão, e esteve presente na revolta da serra, entre Miguelistas e Liberais, e que foi um entreposto comercial na rota do sal, carvão, lã etc., tantas vezes esquecido, soube erguer-se nos momentos mais duros. A todos eles, o nosso mais profundo agradecimento.

E, no entanto, todos os anos repetimos a mesma ladainha. Choramos as aldeias queimadas, lamentamos os mortos, exaltamos os bombeiros como heróis fatigados e, no fim, fechamos o ciclo com promessas que nunca chegam a ver a luz do dia. A tragédia repete-se como um ritual macabro, e o país parece resignado a viver entre o cinzento das cinzas e o vermelho das chamas.

Não é apenas a inércia governativa que assusta; é a falta de memória coletiva.

Portugal, que todos os verões vê arder parte de si, já deveria ter desenvolvido, por instinto de sobrevivência, uma verdadeira cultura de prevenção. Mas não. Reagimos sempre depois do desastre, como se o fogo fosse uma surpresa e não uma inevitabilidade.

O problema não está apenas na estratégia falhada do combate. Falta um projeto nacional para o ordenamento da floresta, para a responsabilização dos incendiários, para o reforço estrutural de quem está na linha da frente. Enquanto os bombeiros enfrentam muralhas de fogo com meios insuficientes, os decisores discutem orçamentos como se estivessem a jogar xadrez com peças de papel.

Portugal não pode continuar prisioneiro da impunidade. Incendiários que saem dos tribunais como se nada fosse, proprietários impotentes, governos que empurram responsabilidades como quem passa um dossiê incómodo. A soma desta desresponsabilização é o inferno que todos os anos consome casas, vidas e esperanças.

Depois, chega a farsa de sempre. Discursos de circunstância. Minutos de silêncio. Diretos televisivos. Depois, o esquecimento. E, no próximo verão, o ciclo recomeça.

Mas Portugal não precisa de mais lágrimas, nem de gente importante. Precisa de comando, de políticas transversais e de coragem política. Precisa de um Estado que defenda o território como um bem sagrado, porque cada pedaço de floresta que arde é também um pedaço de futuro que se perde. Temos de ser dignos herdeiros de D. Afonso Henriques, capazes de honrar a terra que nos foi legada com a mesma determinação de quem a fundou. O Estado tem de deixar de ser “poucochinho” e assumir, sem hesitação, a defesa intransigente do país.

O país do arco-da-velha não aguenta mais ser caricatura de si próprio. Somos maiores do que a nossa tragédia. Falta apenas quem governe com a responsabilidade e a visão que os portugueses merecem.

No limite, não arde apenas a floresta — arde a confiança de um povo inteiro.

Carlos M.B. Geraldes, PhD.