A manhã de 6 de agosto de 1966 trouxe a Lisboa um espetáculo cuidadosamente encenado. A inauguração da então designada Ponte Salazar representava, para o Estado Novo, uma prova material da sua capacidade de conduzir o país à modernidade. O acontecimento foi transmitido pela Emissora Nacional e noticiado na imprensa como um triunfo da engenharia nacional, ainda que a construção tivesse sido dirigida pela United States Steel Export Company. A ponte surgia como vitrine do regime, um monumento erguido para perdurar e servir de argumento de propaganda.

No discurso oficial quase nada se disse sobre os homens que perderam a vida durante a obra. O regime assumiu apenas quatro mortes, citando os nomes de José da Silva, Tito dos Anjos Lena, António Jorge Germano Ribeiro, e Fernando Sampaio Dias Oliveira. Esses nomes foram os únicos admitidos na versão oficial, reduzidos a notas marginais num relato em que o brilho da obra não poderia ser manchado por tragédias humanas.

O fim da ditadura e a queda da censura em 1974 permitiram que a verdade viesse à superfície. O engenheiro Luís F. Rodrigues, no livro A Ponte Inevitável, demonstrou que o número de mortos não se ficara pelos quatro divulgados, mas chegara a onze. A discrepância mostrou como o Estado Novo moldava a realidade, apagando sete vidas do relato público. Outras homenagens realizadas em democracia falaram mesmo em vinte trabalhadores mortos, sinal de que a dimensão da tragédia poderia ter sido maior do que qualquer registo oficial.

A memória popular transmitiu ainda um episódio inquietante. Vários testemunhos de antigos operários e familiares sugeriram que alguns homens terão caído dentro da cofragem de um dos pilares, ficando soterrados pelo betão fresco. A hipótese nunca foi confirmada em relatórios técnicos, mas resiste como uma das narrativas mais insistentes ligadas à construção da ponte. O silêncio documental em torno desta possibilidade reforça a suspeita de ocultação, já que mortes dessa natureza não permitiriam funerais, registos civis ou reconhecimento público.

O trabalho diário de mais de três mil operários sobre o Tejo implicou riscos extremos, quase sempre sem medidas de segurança compatíveis com a perigosidade da obra. A pressa em terminar a ponte antes do prazo e a lógica produtivista do regime contribuíram para um ambiente em que acidentes graves eram quase inevitáveis. A estatística oficial foi moldada para servir a narrativa política e não para dar conta da realidade vivida no estaleiro.

A ponte ergueu-se como um marco de modernidade, mas também como um espaço de silêncio. As mortes ocultadas não representam apenas números que não batem certo, representam histórias pessoais que nunca foram reconhecidas. A ausência de registos detalhados revela uma atitude típica do Estado Novo: a vida humana subordinada ao mito da grande obra nacional.

A travessia quotidiana da ponte não recorda, na maioria das vezes, aqueles que a construíram em condições de risco permanente. No entanto, a história completa exige memória e exige verdade. O aço e o betão sustentam automóveis e comboios, mas sustentam também um passado de sacrifício humano. O esquecimento dos que ficaram pelo caminho não pode ser o preço da imponência. A ponte sobre o Tejo, celebrada como símbolo de progresso, permanece também como testemunho de vidas apagadas pela censura e pela propaganda.

Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor