
Com os grandes projectos a operarem em pleno, Moçambique pode resolver muitas das suas dificuldades, como por exemplo, os empregos precários no sector informal, considera Letícia Klemens, que foi ministra dos Recursos Minerais durante 14 meses, tendo neste período liderado grandes dossiers, entre eles, o da Decisão Final de Investimento do projecto de Gás Natural Liquefeito, o Coral Sul, do consórcio liderado pela empresa italiana Eni. À FORBES ÁFRICA LUSÓFONA, a antiga governante fala ainda da necessidade de se apostar na formação técnica, com maior enfoque para a Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, no sentido de se impulsionar o saber fazer. Nesta conversa a empresária partilha o seu pensamento sobre como tirar maior proveito dos recursos que o país possui.
Como foi a experiência de ser ministra dos Recursos Minerais e Energia?
Servir o meu país como ministra dos Recursos Minerais e Energia constituiu uma enorme honra para mim. Foram 14 meses de trabalho intenso e empenhado. Foi uma experiência muito positiva e também um grande aprendizado que vou carregar por toda a minha vida.
Depois da longa experiência no sector privado, foi desafiada a dirigir um dos Ministérios mais complexos. Que mudanças isso trouxe para si?
Antes do Ministério dos Recursos Minerais e Energia (MIREME), eu encontrava-me engajada, num trajecto de muitos anos, no sector privado, como empresária, o que me permitia uma visão ampla da dinâmica da economia moçambicana. Neste sentido, o sector energético não me era desconhecido, por isso mesmo eu tinha plena consciência dos desafios decorrentes da expectativa nacional e internacional que se depositava nos recursos minerais moçambicanos. Eu própria, enquanto moçambicana, também estava imbuída desse sentimento de esperança, acreditava e continuo certa de que os largos recursos minerais moçambicanos podem contribuir de forma expressiva para a economia.
Esta convicção foi, até certo ponto, determinantes no exercício da sua função de pouco mais de um ano?
Todos estes aspectos serviram de grande incentivo para a minha total imersão nas funções de ministra dos Recursos Minerais e Energia. Queria contribuir para a materialização desse sonho colectivo que se reacendia a cada vez que se falava dos recursos naturais moçambicanos. Foi assim que procurei estabelecer um plano de acção consistente e que permitisse uma maior fluidez na participação do MIREME no cumprimento do Programa Quinquenal do Governo e respectivos Planos Económicos e Sociais de 2016 e 2017.
Que balanço faz da sua passagem pelo MIREME?
Sinto que ao fim do meu mandato tinha conseguido reorganizar e dinamizar os principais projectos de exploração de hidrocarbonetos e de minerais sólidos com maior peso na estrutura global de produção. Entre muitas outras boas experiências, quero também assinalar, de forma muito especial, um dos nossos êxitos ano nível da regulamentação sobre a energia atómica e aí marcou-me a ida à Assembleia da República para apresentar a respectiva proposta de lei. O parlamento nacional discutiu, pela primeira vez, a questão do uso da energia atómica. A proposta de lei que tínhamos na mesa foi aprovada por unanimidade e consenso de todas as bancadas parlamentares. Também levamos a lei de criação da Autoridade Regulador de Energia (ARENE), igualmente aprovada por unanimidade e consenso. Tudo isto foi satisfatório, considerando que eram as minhas primeiras experiências num dos mais importantes órgãos de soberania, “a casa do povo”. Os debates que aconteciam no Conselho de Ministros, também ele um órgão decisivo do Governo, foram marcantes e enriquecedores, pela forma engajada como todos os participantes se debruçavam sobre os assuntos que eu levava enquanto titular da pasta dos recursos minerais e energia.
Ainda lhe veem à memoria alguns desses debates…
Cito como exemplo, a sessão que culminou com a aprovação da proposta dos termos e condições dos contratos de concessão de pesquisa e de produção de petróleo das Áreas 1 e 4 da Bacia do Rovuma que permitiriam o início da implementação dos Projectos de Extracção e Liquefação do Gás Natural, designadamente Golfinho/Atum, na Área 1, e Coral Sul, na Área 4, ou a aprovação de vários dossiers, tais como Planos de Desenvolvimento, Adendas, Memorandos e as Decisões Finais de Investimento.
Como é que, naquela altura, Moçambique conseguiu convencer os outros países a investirem nas suas enormes reservas de hidrocarbonetos?
Paralelamente, conseguimos levar Moçambique a participar na LNG Producer-Consumer Conference 2017, em Tóquio, uma plataforma com visibilidade mundial, para os países produtores e compradores. Neste evento, dentre os ministros participantes, eu era a única mulher e também a mais nova em termos etários. Foi uma participação de grande repercussão, na medida em que o mundo do Oil & Gas ficou a saber da quantidade do gás de Moçambique. Portanto, este fórum contribuiu para sedimentar o lugar de Moçambique no mapa do LNG mundial, o que ajudou bastante na pavimentação do caminho para as negociações que viriam a ter lugar. Resultou também dessa visita o compromisso dos Governos, empresas japonesas e tailandesas para a compra de LNG na Área 1 da bacia do Rovuma. Neste contexto, faço uma avaliação muito positiva da minha passagem pelo MIREME, pois tenho a convicção de que dei o meu melhor contributo para uma boa resposta aos desafios que se lhe impunham na altura. E, como disse anteriormente, foi também uma oportunidade de ampliação das minhas competências, enquanto profissional e cidadã comprometida com o desenvolvimento de Moçambique.
“Devemos aprender com as nossas falhas e as dos outros países e criar o nosso próprio modelo, pensando sempre nas gerações vindouras.”
Quais foram os principais desafios, constrangimentos?
Por volta de 2016, o mundo inteiro tinha todas as suas atenções viradas para Moçambique. Por isso, era natural que houvesse muita pressão sobre o MIREME, este sector tinha que mostrar resultados. A classe empresarial perspectivava oportunidades de negócio no sector energético. A comunicação social redobrava o seu escrutínio. E, por outro lado, a sociedade estava bastante expectante, com toda a legitimidade.
De que forma encarou essa pressão toda?
O conjunto destes factores trouxe uma responsabilidade acrescida ao MIREME e para a ministra em particular. Era necessário, por isso, que estivéssemos à altura, para não desiludir. Foi no quadro desta atmosfera de expectação, à escala nacional e internacional, que procuramos realizar um profundo diagnóstico da situação, para definir a melhor linha de actuação. Esse exercício permitiu-nos identificar os desafios mais prementes da altura. Com efeito, entre outras questões, verificamos que era necessário e urgente investir no reforço da nossa capacidade institucional, para responder plenamente à nova dinâmica do sector. Um dos ganhos desta medida foi a progressiva melhoria da nossa capacidade técnica e de negociação. Mas era também prioritário reforçar os mecanismos de fiscalização e controlo da mineração artesanal e de pequena escala, de modo a assegurar uma exploração sustentável dos recursos minerais.
Dessas reformas, que resultados a instituição obteve?
Conseguimos óptimos resultados, dos quais posso destacar a modernização do cadastro mineiro e a criação de uma nova versão do sistema de licenciamento mineiro, ajustada à nova legislação. Adicionalmente, mostrou-se urgente identificar e inventariar os recursos minerais estratégicos produzidos em Moçambique e definir o posicionamento do Estado em relação a eles, para que maximizássemos os ganhos decorrentes da sua exploração. Foi neste quadro que aprimoramos a mecanismo de seguimento sistemático dos empreendimentos de produção de carvão e de areias pesadas. Ainda no quadro dos desafios, uma das muitas experiências marcantes deu-se logo no início das minhas funções como ministra. Foi o dossier relativo ao aprimoramento do mecanismo de importação de combustíveis. Este foi um dos maiores “barómetros” da minha capacidade de gestão. Ora, mais ou menos em Janeiro de 2017, o país esteve na eminência de uma ruptura generalizada do fornecimento de combustíveis, o que teria como consequência primária o colapso total da economia.
De que forma foi possível reverter esse cenário de quase colapso?
Felizmente, e com o precioso apoio de toda a equipa do MIREME, consegui encontrar soluções de longo prazo, efectivas e sustentáveis. Modernizamos os mecanismos de controlo de qualidade dos combustíveis, dando início ao processo de migração das especificações dos combustíveis de 500 PPM para 50 PPM. Introduzimos a liberalização do financiamento na importação de combustíveis. Ainda como corolário dessa série de medidas de estabilização, em 2018, foi introduzida a marcação dos combustíveis, como forma de mitigar o comércio ilegal e a fuga ao fisco, mas também para garantir que não houvesse adulteração do combustível. Com este procedimento registou-se a redução da importação e exportação ilegal dos combustíveis e colmatamos também o dumping de produtos entre empresas. Realce-se também, como resultado das nossas acções, a melhoria da capacidade de acompanhamento e análise do valor dos recursos minerais e seus derivados, assim como dos diversos produtos intermediários obtidos no seu processamento, no mercado internacional e nacional.
Houve mais acções nessa altura, pois não?
Por essas alturas, deu-se também início à actualização mensal dos preços e respectiva divulgação na imprensa, para conhecimento público. Por outro lado, alcançamos o marco de electrificação dos distritos, conforme previsto no Plano Quinquenal. De um modo geral, o balanço que faço, em termos de resultados, é positivo, no sentido de que muitos dos projectos prioritários do sector de energia aprovados pelo Conselho de Ministros foram concretizados.
“Servir o meu país como ministra dos Recursos Minerais e Energia constituiu uma enorme honra para mim.”
Foi ministra dos Recursos Minerais durante 14 meses e liderou grandes dossiers, entre eles, o da Decisão Final de Investimento do projecto de Gás Natural Liquefeito, o Coral Sul, do consórcio liderado pela empresa italiana Eni. Como é que avalia, hoje, o desenvolvimento desse projectos na Bacia do Rovuma, em Cabo Delgado?
Orgulho-me bastante por ter tido a honra e a oportunidade de trabalhar neste dossier de importância estratégica para Moçambique. Foi muito marcante a experiência de trabalhar no plano de desenvolvimento que conduziu à Decisão Final de Investimento. Anima-me sobretudo o facto de que a implementação do projecto decorre conforme o planeado. Podemos afirmar, por isso, que é um projecto de sucesso. Tenho estado a acompanhar atentamente, por via das notícias nos órgãos de comunicação social, a implementação do projecto e a minha avaliação é positiva. O plano de desenvolvimento do projecto é muito consistente e os resultados estão à vista de todos. Foram produzidos até ao momento cerca de 5 milhões de toneladas de LNG, o que constitui um marco significativo sobretudo ao nível técnico e da arrecadação de receitas, estimando-se que o Estado moçambicano arrecade um valor de cerca de 75 milhões de dólares. Outro dos aspectos dignos de menção é a alta taxa de absorção de mão-de-obra moçambicana, a qual, segundo os dados tornados públicos, situa-se na faixa dos 350 moçambicanos, dos quais 100 na plataforma. E, claro, o nosso gás já é consumido na Europa e na Ásia, um motivo de satisfação para todos os moçambicanos.
Um dos desafios que o país tem é de colocar esses grandes projectos ao serviço dos moçambicanos. No seu ponto de vista, de que forma essa pretensão pode ser colocada em prática?
Os grandes projectos podem impactar de diversas formas, mas é importante que melhoremos continuamente, a todos os níveis, a nossa capacidade de reter e redistribuir na nossa economia parte dos ganhos gerados pelos grandes projectos. Assim, podemos citar, por exemplo, o envolvimento do sector privado local, através da política de conteúdo local. Entretanto, para que se tire maior proveito desta possibilidade é importante que o empresariado nacional ou local se potencie cada vez mais para responder integralmente as exigências de qualidade e certificação demandadas pelos grandes projectos. Por outro lado, penso que a regulamentação fiscal também deve ser aprimorada para permitir um equilíbrio entre os incentivos fiscais e a arrecadação de receita fiscal, potenciado um impacto mais substancial na economia e na vida das pessoas.
No seu entender, esse trabalho está a ser realizado actualmente?
Há, felizmente, um esforço muito grande por parte das autoridades, para adequar as políticas que incrementem o contributo dos grandes projectos. Como resultado desse esforço, temos por exemplo o caso da Sasol que procura gerar um impacto positivo entre as comunidades locais próximas dos seus investimentos em Inhambane. Portanto, para maximizar os ganhos com os grandes projectos, devem reforçar-se os mecanismos que garantam que estes contribuam, directa ou indirectamente, na criação de postos de emprego, na construção de infra-estruturas de impacto social.
Para atrair mais investimentos para o país, Moçambique tem vindo a dar incentivos fiscais às empresas. Muitas delas só irão pagar, por exemplo, o Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (IRPC), cerca de 15, 20 a 30 anos depois. Por isso, há quem defenda a necessidade de renegociação dos contratos. Concorda com essa proposta?
Não aconselharia no estágio em que os projectos se encontram. Temos que ser inteligentes e estrategas. Existem muitas outras formas de mitigar os erros, havendo-os. Os incentivos são importantes e necessários para atracção de investimento para o nosso país, principalmente para o sector do Oil & Gás que conta com poucas empresas a nível mundial. Estes incentivos permitem a redução da carga tributária sobre as empresas, garantindo a sua estabilidade e competitividade, salvaguardando deste modo a geração de postos de trabalho e o crescimento económico do país. Por outro lado, reconheço a necessidade de assegurar que as negociações não tenham em conta única e exclusivamente o interesse das multinacionais. Os proveitos para o país devem ser salvaguardados em todos os processos negociais. Devemos apreender com as nossas falhas e as dos outros países e criarmos o nosso próprio modelo, pensando sempre nas gerações vindouras e tirando maior proveito possível por serem recursos escassos.
De que forma o país pode tirar maior proveito do gás que fica, no âmbito da partilha de produção, prevista nos contratos com os megaprojectos?
A negociação sobre a partilha de produção nos projectos de gás é muito complexa e exige muita ponderação. Moçambique tem estado a fazer o melhor que pode neste aspecto, para capitalizar os seus recursos a bem do povo. Entretanto, a nossa posição nas negociações acaba por ser condicionada pelas limitações em termos de capital financeiro em comparação com os investidores. Ao sermos financiados na nossa cota como parceiros e ao mesmo tempo termos de pagar juros do mesmo empréstimo fica difícil a geração de rendimentos. Devemos sim ser financiados, mas a free care ou com a possibilidade de negociar a redução dos juros cobrados pelos investidores. Temos experiências de outros países africanos que adoptam o mesmo sistema, com bons resultados. Penso que seria interessante buscar estas experiências de países como a Nigéria, contextualizá-las à nossa realidade, para tirar maior proveito dos nossos recursos. Portanto, as negociações devem procurar, na medida do possível, assegurar que os termos contratuais possibilitem eventuais ajustamentos sempre que tal se mostrar adequado.
Apesar de Moçambique estar a atrair vários investimentos, há muita gente a trabalhar em actividades informais. Como reverter esse cenário, de modo a permitir que mais pessoas sejam absorvidas pelo sector formal?
Nós temos sorte de ter o gás que nenhum outro país africano possui. Dispomos da possibilidade de atrair todo o tipo de investimento somente com o gás do Rovuma. Esta indústria pode impulsionar o surgimento de grandes, pequenas e médias empresas, contribuindo para a transição natural do sector informal para o formal e criando várias oportunidades de emprego. A industrialização é crucial para o crescimento de um país, em todos os aspectos. Um dos exemplos notáveis relacionados com o impacto da exploração do petróleo e gás é a Guiana, um país em franco crescimento graças aos projectos de petróleo e gás. Entretanto, um dos grandes desafios para a consolidação dos nossos projetos é a segurança. Temos de assegurar a segurança em Cabo Delgado, para que as grandes empresas possam investir muito mais. Com os projectos a operarem em pleno, resolvemos muitas dificuldades do nosso país. Esta insegurança ė que ė a nossa maldição.
Gestora de topo
Com capacidades de gestão executivas, competências especificas e especialidade nas componentes de desenvolvimento organizacional e de recursos humanos, Letícia Klemens conta com mais de 15 anos de experiência profissional no sector privado e público em Moçambique. Serviu como ministra de Recursos Minerais e Energia entre 2016 e 2018, devido a sua experiência e conhecimento específico do sector de Petróleos & Gás bem como pelo seu perfil activo e dinâmico necessários para a consumação das estratégias e planos do sector. Foi também presidente da FEMME – Associação Nacional de Mulheres Empresárias e Empreendedoras de Moçambique de 2009 a 2016, assim como presidente da AMAE – Associação Nacional das Agências Privadas de Emprego de Moçambique, entre várias funções já desempenhadas na sociedade moçambicana. Como resultado do seu trabalho, é uma interlocutora respeitada nas instituições da Administração Pública de Moçambique, bem como dos Parceiros de Cooperação, Organizações da Sociedade Civil e do Sector Privado em Moçambique.
Entrevista publicada na edição impressa Setembro/Outubro 2024