
Duff Cooper publicou a sua biografia de Talleyrand em 1932, entre duas guerras que ainda afligem a memória europeia. Era uma Europa que não esquecia Verdun e já pressentia a humilhação de Munique. Uma Europa que chorava o passado e temia o futuro. Uma Europa suspensa entre o orgulho e a ruína.
O livro não é apenas a narrativa de um homem. É espelho de sobrevivência, um tratado de paciência escrito por quem conhecia cada corredor da diplomacia e cada sombra dos salões de Paris. Cooper viu no bispo sem fé, no cortesão sem rei e no ministro sem escrúpulos uma lição amarga, mas necessária: a política externa raramente se guia por princípios incorruptos, ainda que dependa de valores comuns para impedir a catástrofe.
Essa permanência explica porque a obra resiste ao tempo. Não se limita a ser arquivo ou biografia: é um quadro vivo que expõe o apodrecimento do Antigo Regime, captura a vertigem da Revolução, revela a teatralidade de Napoleão e transporta-nos até Viena. Cooper não disfarça a sua simpatia pelo protagonista. Muitos chamaram-lhe traidor, mas ele insiste: sob a máscara do camaleão havia coerência. Moderar, reconciliar, conter os excessos que arruínam povos e impérios – eis o paradoxo que sustenta a grandeza do retrato. O aparente cínico era, afinal, o verdadeiro estratega.
Não surpreende, portanto, que Talleyrand não tenha erguido barricadas nem derramado sangue por ideais. A sua força residia noutro lugar: transformava silêncio em arma, paciência em método, lentidão em vitória. Onde outros celebravam triunfos efémeros, ele via a sabedoria de preservar. Napoleão acumulava glórias passageiras, o seu ministro procurava equilíbrios duradouros. Onde os radicais pregavam utopias, ele fabricava compromissos possíveis. Era arquiteto de uma paz imperfeita, mas concreta. Ao conseguir que a França derrotada fosse tratada como igual no Congresso de Viena, salvou-a do castigo inevitável do ressentimento europeu.
Claro que trocou de lealdades como quem troca de casaco. Mas sob essa aparência de traição percorria uma linha de coerência: evitar excessos, refrear vertigens, impedir que a França se perdesse em fanatismos alternados. Não procurava a virtude, mas o equilíbrio indispensável à sobrevivência. É precisamente aqui que Talleyrand se torna desconfortavelmente atual. Se regressasse hoje, encontraria uma Europa hesitante, ameaçada pelo isolacionismo errático de Trump, pelo imperialismo ressuscitado de Putin e por guerras na Ucrânia e em Gaza que devoram vidas e corroem instituições. Encontraria um continente que proclama virtude, mas muitas vezes age impotente. O velho diplomata lembraria que não há paz que nasça da humilhação do adversário, nem segurança que resulte de cedências unilaterais.
Essa atualidade decorre do facto de Talleyrand, tantas vezes descrito como oportunista e pragmático, possuir princípios orientadores: acreditava no equilíbrio de poder, na diplomacia e na estabilidade das relações internacionais acima de qualquer fervor ideológico. Defendia a legitimidade política – a autoridade fundada no consentimento da sociedade, não apenas na força das armas, como entende Putin – e cultivava um apreço consistente pela lei, pelo governo “constitucional”, pela convivência pacífica entre Estados. Estabilidade, dizia-nos implicitamente, nasce do reconhecimento das instituições legítimas e do respeito pelos limites mútuos.
Tal visão permitir-lhe-ia compreender melhor do que nós a lógica russa. O Kremlin sabe o que o Ocidente tende a esquecer: a vitória na Ucrânia não se decide apenas nas trincheiras e nos céus, mas na durabilidade da unidade ocidental. É fácil fixar os olhos nos mapas militares, mas o centro de gravidade é outro. A Rússia não triunfará numa guerra prolongada se os Estados Unidos e a Europa permanecerem unidos – se a NATO resistir a Donald Trump e à sua diplomacia desenganadamente transacional.
Por isso, a tática russa não se joga apenas em Donetsk ou Kherson. Alimenta-se da polarização americana e do cansaço do Congresso, das fragilidades europeias e das perceções que dividem o Leste do Ocidente, da eterna disputa sobre quem paga mais e arrisca mais, e ainda daqueles que se sentam à mesa do Conselho Europeu apenas para atrasar decisões.
A lição é antiga. Quando a vitória militar é inalcançável, transfere-se a guerra para os gabinetes. Ontem a União Soviética – hoje a guerra híbrida, digital, psicológica e global. Eis a pergunta que Talleyrand nos impõe: não quão fortes são os recursos russos, mas quão resilientes são as nossas instituições, as nossas alianças, as nossas narrativas.
Enquanto o Ocidente permanecer unido, o desfecho é previsível. Se vacilar, se a coesão se romper, o Kremlin conquistará pela erosão lenta o que jamais alcançaria no campo de batalha. O verdadeiro teste não é apenas a resistência da Ucrânia, mas a capacidade do Ocidente de não abdicar da sua soberania em troca de uma ilusão de segurança que nunca existirá.
E como lidaria Talleyrand com Trump? Certamente não com indignação, mas deixando-o acreditar que vencera antes de negociar. Usaria a vaidade como moeda, trocando vitórias simbólicas por compromissos reais. Não cederia unilateralmente – numa guerra comercial – nem por inteiro – como em Haia. Mas diria aos europeus que não é afrontando um aliado errático que se constrói autonomia, mas sentando-se à mesa como parceiro indispensável.
E com Putin? Repetiria a lógica aplicada à Rússia czarista: reconheceria a necessidade de “segurança” sem legitimar a agressão. Negociaria a partir da força, talvez agravando as sanções e confiscando os ativos soberanos russos. Amplificaria o medo de isolamento, através de tarifas secundárias. E faria da UE não um eco tímido da NATO, mas um ator central, árbitro de equilíbrios, capaz de oferecer o que outros não podem ou não querem oferecer.
Podemos, enfim, imaginá-lo a advertir Emmanuel Macron de que a diplomacia não é sermão, lembrando que os povos não se governam por parábolas, mas por equilíbrios. A chocar com Mark Rutte sobre o seu servilismo de mau-gosto. A advertir o Chanceler Merz que a Europa não esperará para sempre pela Alemanha. Contra o aventureirismo que confunde ambição com destino, mas a insistir que a unidade europeia não é idealismo. Recordar-nos-ia que a divisão sempre foi o maior trunfo dos rivais da Europa – que não nos esquecemos de nada, mas que também não aprendemos nada.
As nações podem não ter amigos, apenas interesses. Muitos defendem esta ideia com afinco. Mas a Europa não é uma nação – é um continente. E a União Europeia não é uma mera organização internacional – é uma comunidade que decidiu ligar o seu destino. A sobrevivência de ambas – e da Ucrânia – exige, portanto, valores partilhados. O realismo até pode indicar o que fazer quando lá chegarmos, mas são os nossos valores comuns que traçam o caminho.