Não tenho estados de alma sobre orgânicas. Mais ou menos direção-geral, mais ou menos instituto ou agência, o que é relevante é saber se funcionam, se cumprem a sua missão e não o seu nome, quantos dirigentes têm ou o lugar específico a cada momento. Importa, contudo, conhecer a história e refletir sobre o que se pretende com cada serviço ou estrutura para que os debates sejam informados.

Tenho lido algumas posições alarmantes e que, obviamente, a todos preocupam sobre uma eventual extinção do Plano Nacional de Leitura e da Rede de Bibliotecas Escolares. Sinceramente, não vi mais do que um powerpoint em que se alojam estas duas estruturas numa nova instituição a ser criada, pelo que me parece prematura a manifestação contra a extinção, reconhecendo, porém, que posso não conhecer o que fundamenta estes medos.

Vale a pena fazer um pouco de história e relembrar por que motivo foram criados o Plano Nacional de Leitura e a Rede de Bibliotecas Escolares, assinalando as razões da manutenção da sua autonomia funcional e orgânica, para que futuras decisões possam não comprometer um caminho trilhado com sucesso. Tive a felicidade de acompanhar o Plano Nacional de Leitura desde o seu nascimento, como membro do Conselho Científico que foi criado, quando era Comissária Isabel Alçada. O Plano Nacional de Leitura surgiu do reconhecimento de que Portugal tinha (e ainda persistem) níveis baixos de literacia e leitura. Aquando da primeira participação de Portugal no PISA, fomos informados do muito baixo desempenho dos jovens portugueses em tarefas de leitura, com principal destaque para tipos e géneros textuais menos trabalhados na escola. Percebeu-se, desde cedo, com uma visão muito estruturada e estruturante por parte de Isabel Alçada e da equipa original, que a promoção da leitura implicava um compromisso intersetorial. Por um lado, entender que era preciso desenvolver instrumentos e conhecimentos sobre a aprendizagem da leitura, sobre os comportamentos precoces de leitura ainda em idade pré-escolar e sobre o fomento da leitura por prazer. Falávamos na altura da importância fundamental do gosto, do reconhecimento de que nem todos nos sentimos atraídos pelos mesmos livros, da importância de proporcionar títulos diferentes a diferentes perfis de leitores, da correlação entre prazer e capacidade, da conquista que é, em diferentes idades, conseguir ler um livro até ao fim.

Uma dimensão fundamental do Plano Nacional de Leitura é a sua missão alargada. Percebeu-se, desde o início, que esta não se esgota, nem se cumpre, apenas no trabalho com as crianças e os jovens. Por um lado, a produção de conhecimento científico sobre a leitura foi determinante para configurar melhores intervenções. Por outro lado, os estudos de avaliação que o Plano foi promovendo confirmaram, com regularidade, alguns dados fundamentais: a redução dos hábitos de leitura na pré-adolescência, as assimetrias entre rapazes e raparigas e, de forma absolutamente crucial, os ambientes de leitura em contexto familiar e extraescolar como fortes preditores da formação de leitores. Ter livros em casa, falar-se do que se lê e falar-se de livros é um dos principais fatores determinantes da formação de novos leitores. É nestes indicadores que se encontra a missão fundamental de uma política pública de leitura. Reduzir estas desigualdades implica criar uma perceção partilhada da importância da leitura (ler não é “chato”, ler é para todos, ler faz bem), o que se foi conseguindo com importantes campanhas de sensibilização da população. Levar os livros às famílias, através das bibliotecas públicas e do enorme trabalho que os municípios fazem na criação de feiras do livro, de ofertas culturais em torno do livro e dos escritores. Associar a importância da leitura à saúde, como se fez no programa “Ler+ dá saúde”, que convidou os médicos a recomendarem a leitura nas consultas de acompanhamento das crianças e das famílias. Introduzir sugestões de leitura nos programas de formação de adultos com baixas qualificações. Dessacralizar o livro, deselitizando a leitura. Envolver os órgãos de comunicação social no fomento do livro e da leitura. Estes são marcos importantes dos quase 20 anos do Plano Nacional de Leitura.

Aqui reside a essência da relação entre missão e orgânica. Ao funcionar como estrutura de missão interministerial, o Plano Nacional de Leitura abraça este desígnio fundamental de não se cingir a um plano escolar de promoção da leitura. É uma missão que tem como alvo toda a população. Esta missão é ainda mais importante no tempo que vivemos, em que a leitura com complexidade e profundidade, com tempo, é secundarizada perante uma cultura de imediatismo, governada por algoritmos e mensagens rápidas, em que a desinformação abunda nas redes sociais. O fomento da leitura em tempo de crescimento do digital e da Inteligência Artificial convida ao aprofundamento das estratégias de promoção da literacia mediática, de uma investigação cada vez mais aprofundada sobre como ensinar a ler (jovens e adultos) para além da mera descodificação. É o tempo de olhar para o que dados dos estudos internacionais apontam: as principais dificuldades estão nos processos inferenciais, na diferenciação entre factos e opiniões quando se lê, na leitura extensiva, na interpretação da complexidade, na capacidade de reconhecimento de diferentes géneros e tipos de texto, na importância do paratexto e da validação de fontes. Só uma missão que continue a suportar-se (também orçamentalmente) na colaboração entre diferentes áreas da Administração Pública consegue enfrentar estes desafios. Uma eventual redução do Plano Nacional de Leitura a um “subserviço” da educação falharia este propósito.

Sei, por experiência, do desequilíbrio histórico no contributo das diferentes áreas (leiam-se, a este propósito, as recomendações da dissertação de doutoramento de Isabel Alçada). Desde o início, o contributo financeiro do Ministério da Educação não foi acompanhado pelos outros setores (autarquias, cultura, comunicação social, ciência e ensino superior). Isso apenas significa que estas áreas têm de se empenhar e investir mais. Não pode significar que se retirem. Estou convicto de que o bom senso imperará e que o caminho será o do reforço, mantendo-se o Plano Nacional de Leitura como foi criado e reforçando-o, através de um compromisso mais forte de outros ministérios, como é urgente fazer e como tantas vezes não se conseguiu.

É por esta natureza intersetorial das políticas de promoção da leitura que se entende também que não seria boa ideia fundir a Rede de Bibliotecas Escolares no Plano Nacional de Leitura. Esta Rede foi constituída, com a liderança de Teresa Calçada, como um passo fundamental para que as bibliotecas deixassem de ser apenas um espaço físico, afirmando-se como uma componente central dos projetos educativos das escolas e, sobretudo, para que houvesse dinâmicas de apoio, na formação e nas práticas, aos professores bibliotecários, que são figuras-chave na organização de uma escola. Ouvi muitas vezes dizer que as bibliotecas escolares, pela sua capilaridade, funcionam como o “braço armado” do Plano Nacional de Leitura. É verdade, mas são mais do que isso. As bibliotecas são o centro das estratégias de promoção da cidadania nas escolas (por isso, a Rede foi envolvida na construção da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania), são parte integrante das estruturas de apoio aos alunos que enfrentam barreiras no acesso ao currículo, constituindo-se como pilares para uma boa implementação da inclusão nas escolas, são o espaço do encontro entre as diferentes disciplinas do currículo, sedeando inúmeros projetos interdisciplinares. A sua missão é, pois, bastante mais ampla do que a de operacionalização do Plano Nacional de Leitura. A sua autonomia de decisão face a outras estruturas do currículo foi, historicamente, importante para que houvesse um conjunto de opções estratégicas de complementaridade face ao desenvolvimento curricular.

Para a execução da missão do Plano Nacional de Leitura, se o investimento for certo e o compromisso reforçado, é tão crucial a Rede de Bibliotecas Escolares quanto as bibliotecas públicas, os municípios, as estruturas de saúde, as instituições culturais. A autonomia destas estruturas face ao Plano não se questiona, pelo que uma potencial dissolução da Rede de Bibliotecas Escolares no Plano ou vice-versa seria o assumir da perda de ambição do âmbito da missão de cada uma destas iniciativas de política pública.

Concluo como comecei. Sem convicções fortes sobre orgânicas, mas com a certeza de uma história feliz que não pode ser comprometida, sobretudo em tempo de urgência da leitura e da literatura, e com o convite a que se ouçam alguns dos profissionais que mais admiro nas escolas: os professores bibliotecários e os coordenadores interconcelhios da Rede de Bibliotecas Escolares. Eles conhecem a missão e sabem o muito ainda há por fazer e que urge melhorar para que essa missão saia reforçada.