
A comunidade cabo-verdiana em Portugal é uma das maiores e das mais históricas, espalhada de Norte a Sul, e inclui várias gerações. Exemplo deste entrelace centenário é o nosso músico Dino... D’Santiago, a ilha dos seus pais, nascido e criado no Algarve, fixou-se no Porto aos 20 anos e só depois dos 30 se mudou para Lisboa.
Cabo Verde e Portugal, para lá da história oficial, partilham rotas familiares, culturais e, claro, turísticas. Cabo Verde é um destino de eleição para milhares de portugueses e Portugal é hoje o seu segundo maior mercado emissor de turistas, o que se justifica até pela proximidade que facilita aquela escapadela de inverno por três ou quatro dias. Portugueses e cabo-verdianos de todo o país alimentam esta ponte aérea informal, seja em férias seja em negócios seja em visitas às suas raízes, e até enquanto proprietários de segundas residências.
Por outro lado, há também o turismo médico de lá para cá e a mobilidade estudantil, composta por centenas de estudantes cabo-verdianos em cidades como Bragança, Braga, Porto, Évora ou Coimbra, para além de Lisboa e arredores.
No atual contexto jurídico-comercial aéreo europeu, tudo isto seria razão suficiente para ligações aéreas muito diversificadas, económicas, frequentes e capazes de satisfazer esta teia viva de ligações humanas, académicas e económicas. Mas Cabo Verde está em África a somente 1500 quilómetros a sul das Canárias e isso não é apenas um detalhe. Se dependesse das companhias aéreas públicas – TAP e Cabo Verde Airlines –, o acordo aéreo bilateral de designação única nunca teria sido alterado e, para ambas, todos os caminhos entre os dois países continuariam a passar exclusivamente por Lisboa.
Pouco importa se, ao longos dos anos, cidades como Newcastle ou Bristol, Bordéus ou Nantes, Gotemburgo ou Verona ganharam voos diretos para Cabo Verde. Do Porto ou de Faro, jamais, o negócio é via hub e basta! Voos charters sazonais a partir do Porto também existem, é certo, mas este regime obriga o passageiro a comprar pacotes “avião + hotel” e não é possível adquirir apenas a passagem aérea. Nesse contexto, a posição dominante que o operador pan-europeu TUI exerce, há décadas, sobre a hotelaria de Cabo Verde poderá ter encontrado na easyJet o seu primeiro grande concorrente à altura.
Em Cabo Verde, a TUI controla voos, camas e pacotes para britânicos (corresponde ao mercado emissor líder), holandeses, belgas, alemães e escandinavos. Só quem entra no jogo da TUI, aceitando as suas condições – quase sempre financeiras – é que faz parte desta “festa”.
Este modelo recorda o que se passava no Algarve até aos anos 90: um destino refém de alguns operadores dominantes e dos seus catálogos, sem os quais os hotéis não tinham acesso a esses turistas, que chegavam já com o programa todo comprado. Tal como aconteceu no Algarve, a entrada das companhias de baixo custo modifica o posicionamento e as oportunidades do próprio setor.
Para além disso, a entrada da easyJet veio também provar que alguns países da África subsaariana estão prontos para acolher operações de baixo custo, assentes em infraestruturas funcionais, competitivas e eficazes; a entrada da easyJet é o testemunho de que não foram as companhias estatais, mas sim a easyJet, quem inaugurou os primeiros voos comerciais diretos e anuais entre o Porto e Cabo Verde. Começou com o Sal, mas a nova expansão inclui voos para a Praia e Boa Vista a partir de outubro. Graças à easyJet, haverá uma nova vaga de turistas individuais vindos de Portugal, do Reino Unido (Londres Gatwick e Manchester) e de Itália (Milão-Malpensa), mercados que já conhecem bem o destino e que reservarão os serviços terrestres de forma mais autónoma com vários fornecedores, incluindo os de menor escala. Quatro ilhas ligadas por voos internacionais a preços que começam a partir de 77,49 euros obrigam a concorrência a ajustar os preços do Portugal-Cabo Verde e aproximá-los dos que são praticados em voos europeus de distância semelhante e isso vai alterar todo o conceito de mobilidade e de proximidade do destino, incluindo poder entrar-se por uma ilha e sair-se por outra em voos diretos, à partida, do Porto sem necessidade de estar dependente das fracas e pouco confiáveis ligações interilhas.
Num país onde a companhia aérea nacional, a Cabo Verde Airlines, continua a dar prejuízo e a custar muito dinheiro aos contribuintes sem que daí advenha um benefício claro para a população, fica a pergunta: não faria sentido criar as condições para que a easyJet e outras companhias avancem ainda mais? Quem sabe, abrirem a sua primeira base em Cabo Verde – gerando emprego direto para pessoal de cabine e de terra, mas também fixando mais gente qualificada no país. E, quem sabe, um dia, permitir que os pais de Dino D’Santiago apanhem um voo direto da praia de Faro… para a Praia, em Cabo Verde?
É que, continuando o paralelismo com o tempo das Descobertas tão usado pelos nossos políticos em matérias aeronáuticas, do Algarve, a única incursão aérea africana possível aos dias de hoje é Marrocos…Ainda não se aventuraram no além-mar. Mas, como sabemos, não é por falta de caravelas.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo//Escreve semanalmente no SAPO