
O fecho das licras afugentava o peito e era atraído pela barriga dos ciclistas, que pediam água, por favor, queriam um refresco contra o tórrido calor que destapava os troncos aos ocasionais que aproveitavam o sábado à beira das estradas de Trás-os-Montes, eles eram amigos e bebida para enfrentar a temperatura. Podiam os fãs de ciclismo descascar-se um pouco para regular o termóstato, regalia vedada aos bravos que pedalaram de Boticas a Bragança.
Eram 182 quilómetros que no selim terão sabido a mais, além do sol veraneante a esturricá-los havia quatro contagens de montanha, a temível entre elas guardada para último. Com o aproximar da Serra da Nogueira, o décimo primeiro cume mais alto de Portugal e o inaugural a proporcionar nesta Volta uma contagem de montanha de primeira categoria, a tirada foi liderada a oito pernas, as de Calum Johnston, Kieran Haug, Adam Lewis e Edison Alejandro Callejas, fugitivos que aguentavam uma vantagem para lá de três minutos para o pelotão.
Não seriam as inclinações da serra dos domínios de Bragança a queimar-lhes o suficiente as pernas para amainarem no ritmo. Domada a subida, e unindo-se a eles o grupo de sete aventureiros que os perseguia, quando iniciou a descida o grupo ainda fazia durar uma vantagem de uns dois minutos e meio para um pelotão com andamento ditado pela Israel Premier Tech Academy, equipa do amarelado Pau Martí que virava a cabeça para inspecionar o ânimo dos seus companheiros, a perscrutar se iriam forçar mais o pedal.
Quando a etapa se devolveu a esforços mais na horizontal, os quatro da frente já eram 11 e a 20 quilómetros da meta um repique acordo o pelotão, havia que trabalhar com outro afinco, testar o sangue com a necessidade de mais oxigénio, as extrair das pernas maior potência em troca de as escaldar com o esforço, e para a proa do pelotão foi a AP Hotels&Resorts-Tavira-Farense, vinda cheia de força do sotavento algarvio, mais longe de casa não poderia estar.
Ao ouvir-se o sino bem no coração de Bragança, soado para sinalizar a primeira passagem na meta e os somente 15 quilómetros em falta, os apressados fugitivos já só tinham os urgentes perseguidores a uns 25 segundos, o fim da 3.ª etapa da Volta não dava folgas para ciclistas borrifarem água na face ou aplicarem pequenos blocos de gelo por baixo das licras. No sopé do castelo da cidade, as curvas e contracurvas, rotundas, pequenas subidas e descidas entre alcatrão e empedrado das ruas mais antigas exigia-lhes pressa e precisão.
Saídos um pouco das entranhas da cidade, o grupo da frente que tivera quatro e engordara para onze foi para fatiado para apenas três com a passagem por Bragança, eram os portugueses Tiago e Hugo Nunes, este o líder da contagem de montanha, na companhia do inglês Adam Lewis Nunes. Tinham 10 quilómetros por pedalar e um pelotão faminto atrás deles. Devolvidos aos cruzamentos e entroncamentos, a frente mantinha as três cabeças mas uma deles diferente.
O britânico não aguentou o ritmo que um homem escapulido ao pelotão apanhou, Lewis trocou com Caleb Classen e quando o tridente comeu a derradeira curva para a reta da meta já sentiam na traseira o bafo da multidão com pedais, tinham que sofrer a bom sofrer, a maralha vinha esfomeada e quando se entrou em território de sprint as pertenças já se confundiam, fundiram-se, e vinha de lá um português que 40 quilómetros atrás pela cauda do pelotão andava, preso pelas unhas à pertença, a esfolar-se na montanha.
Era o olímpico e campeão Iúri Leitão, ouro em Paris e um foguete em Bragança, que acabaria no quarto lugar, o primeiro entre todos os perseguidores dos três da frente que teriam em Huno Nunes o mais rápido: o português da Credibom / L.A. Alumínios / Marcos Car, já cheio de pontos montanhosos, ganhou a 3.ª etapa da Volta e mal pôde largou a bicicleta para lidar com a descarga de emoção que o encheu de lágrimas ao fim de quatro horas e 44 minutos de esforço. Na classificação geral ficou tudo mais ou menos na mesma atrás da cor que interessa, de Pau Martí, 10.º na etapa. Artem Nych e Rafael Reis continuam no seu encalço.
Não foi a jornada de nenhum deles, dos favoritos, mas de um “mediano ciclista”, palavras de Hugo Nunes, nascido há 28 anos em Paços de Ferreira, a quem já ninguém roubará a vitória. “É um sonho que tinha, procuro isto todos os anos, há mais dias maus do que bons, mas hoje foi o meu dia”, disse à RTP1, já refeito da energia gasta, humilde no trato: “Não sou um campeão, mas hoje acreditei em mim, já não acreditava há muito tempo.” O melhor que antes fizera na Volta fora o 6.º lugar em duas etapas.
Ele e todos os ciclistas da tirada vão cuidar do descanso para domingo, dia para rumarem a Mondim de Basto, nome de terra mais simpático do que fazer entrar pelos ouvidos dos ciclistas a Senhora da Graça, alto temível da Volta que impiedoso é a separar os valentes dos sobreviventes.
Às tantas no caminho até Bragança, ia a etapa ainda branda, o eterno Vidal Fitas, homem de Olhão e hoje diretor da equipa algarvia que rola nesta Grandíssima, deixou o vidro cair na janela da carrinha que conduzia para avisar: "Amanhã é o primeiro grande dia de decisões, a Senhora da Graça é um dos pontos que decide."