Chegou a altura de passar das palavras aos atos e colocar o apoio às vítimas e a prevenção no centro das prioridades nacionais. O desafio é multidimensional: passa pelas respostas penais, pelo combate à reincidência, mas também pela reorganização estrutural da propriedade do território.

Uma ferida na confiança colectiva

O flagelo dos incêndios florestais não é apenas uma tragédia ambiental: é uma ferida aberta na confiança coletiva, um teste à capacidade do Estado de proteger os seus cidadãos e o seu território. Comecemos, então, pelo tema das penas.

A legislação penal portuguesa prevê para o crime de incêndio florestal uma pena de prisão que pode variar entre 1 e 8 anos. Esta moldura é agravada para 3 a 12 anos quando, da conduta, resulta perigo para a vida ou integridade física de terceiros, prejuízo económico grave ou quando o crime é cometido com intenção de obtenção de benefício económico.

Quando morre alguém na sequência de um incêndio provocado por uma pessoa, essa pessoa pode ser responsabilizada, simultaneamente, pelo crime de incêndio florestal e pelo crime de homicídio, doloso ou negligente, consoante se prove ou não a intenção de matar.

Colocado de forma simples: devemos considerar igualmente grave e punir da mesma maneira quem ateou um incêndio, mas não sabia que havia pessoas no terreno e quem o fez sabendo que provavelmente mataria alguém ou desejava até essa morte? Dificilmente.

Consoante o caso, mudam as complexidades processuais, como faz sentido que mudem. Mas a consequência tem sido, efetivamente, a diluição da perceção pública da gravidade dos factos e de diferentes níveis de gravidade e, consequentemente, uma deterioração da capacidade de resposta da justiça.

É imperativo que as penas cumpram a sua dupla finalidade: prevenir, de forma geral, a repetição destes crimes punindo-os e, de forma especial, dissuadir a reincidência, promovendo a reintegração social da pessoa.

Entre a Justiça exemplar e a impunidade

Casos paradigmáticos, como o do engenheiro eletrotécnico da Sertã, condenado à pena máxima de 25 anos por incêndios que devastaram 65 mil hectares e causaram uma morte, mostram que a justiça pode ser exemplar.

Agora olhemos para o outro lado do problema. O tema da prisão efetiva.

Num país onde o verão se tornou sinónimo de destruição, urge que a resposta penal seja proporcional à gravidade dos crimes cometidos. Porque é da mais elementar justiça e porque é fundamental restaurar a confiança no sistema de Justiça também por esta via.

Não basta punir: é preciso prevenir, educar e, acima de tudo, garantir que a justiça não se limite a ser um espelho da tragédia, mas sim um instrumento de reconstrução da esperança coletiva.

Na esmagadora maioria das situações, menos de 20% dos condenados por fogo posto cumprem pena efetiva de prisão, perpetuando um ciclo perverso de impunidade que mina a credibilidade da justiça e encoraja a reincidência.

A suspensão da execução da pena é a regra, sobretudo quando a pena aplicada não ultrapassa cinco anos — situação que ocorre em grande parte dos casos de incêndio florestal. Esta opção decorre de diversos fatores: avaliação positiva do potencial de reinserção social do arguido, ausência de antecedentes criminais, ligação ao tecido social, condições de saúde mental ou dependências, entre outros.

Porém, a suspensão da pena só seria socialmente aceitável e eficaz se acompanhada de fiscalização séria, medidas de acompanhamento obrigatórias e programas de reabilitação efetiva.

A realidade, porém, é outra: a fiscalização é rara, os mecanismos são frágeis e os programas de reabilitação prometidos — nomeadamente o Programa de Reabilitação para Incendiários — continuam, em grande parte, por implementar.

Assim, para a sociedade e para as vítimas, a suspensão contribui para a perceção de impunidade; para os reincidentes, funciona muitas vezes como ausência de consequência penal significativa, promovendo o risco de recaída.

Assim, não basta agravar os limites da pena se a prática continuar a privilegiar a suspensão e a inexistência de um verdadeiro acompanhamento dos condenados.

O abandono social e a falta de recursos nos serviços públicos, incluindo estabelecimentos prisionais, dificultam uma reabilitação eficaz. O Programa de Reabilitação para Incendiários, anunciado em 2018, continua praticamente por implementar, tornando o terreno fértil para reincidências.

E a opção pela pulseira eletrónica? Haveria vantagens, não padecessem de males semelhantes aos referidos.

O custo é, de facto, significativamente inferior à prisão tradicional, mas a sua eficácia como medida punitiva depende da sua integração numa abordagem mais ampla: apoio institucional (nomeadamente, bombeiros, forças de segurança, proteção civil, autarquias) continuado, acompanhamento psicológico individualizado, programas de prevenção e reinserção consistente.

Soluções integradas

O exemplo inglês, com os seus Football Banning Orders aplicados a hooligans, ilustra a eficácia de sistemas integrados: interdições em áreas de risco, restrições de circulação, registo centralizado, monitorização dedicada, alertas automáticos e forte articulação entre autoridades. Importar metodologias deste tipo (restrições geográficas em épocas críticas, tags em zonas florestais, fiscalização ativa, envolvimento comunitário), pode ser decisivo.

É preciso revisitar o tema da punição, sim. Mas com menos emoção e mais eficácia.

Há que rever, sim, as molduras penais para que reflitam a gravidade real dos incêndios e da reincidência e tornar efetiva a fiscalização do cumprimento das medidas associadas às penas suspensas.

É preciso criar um sistema nacional de registo e monitorização de incendiários, com pulseiras electrónicas e restrições geográficas efetivas para casos de risco e reincidentes.

Tem de se implementar efetivamente o Programa de Reabilitação, com equipas multidisciplinares especializadas, tanto nas prisões como na comunidade, para garantir acompanhamento e prevenção da reincidência.

Fora do tema das penas, é preciso concentrar esforços na prevenção e aqui o tema da propriedade dos terrenos é chave.

Um problema estrutural decisivo reside na organização da propriedade do território. A estrutura fundiária portuguesa — marcada por registos desatualizados, partilhas não formalizadas e indefinição sobre a posse das terras — dificulta uma gestão ativa e responsável dos espaços florestais. Muitas famílias não se entendem nas partilhas, emigraram ou perderam ligação à terra, tornando os terrenos pasto fácil para o abandono e a propagação dos fogos.

Sem clarificação da titularidade, responsabilização e incentivo à gestão moderna e agregada do território, qualquer política de prevenção será sempre superficial. Urge atualizar o cadastro, simplificar a identificação da titularidade e garantir uma verdadeira responsabilização sobre a terra. E aqui sim, o Estado tem todos os recursos de que precisa para atuar. Urge realizar uma reforma estrutural do cadastro predial e incentivar sistemas inovadores de gestão coletiva dos terrenos rurais abandonados.

Finalmente, é preciso cuidar das nossas vítimas de todas as maneiras ao nosso alcance. Garantir gabinetes de apoio jurídico e psicológico eficaz às vítimas e às populações afetadas é essencial porque muitas vezes estamos a falar de reconstruir uma vida do zero.

Não podemos continuar a ser surpreendidos pelos incêndios a cada Verão. É preciso proteger os cidadãos e o território, seja do crime associado aos incêndios, seja de um contexto de abandono e desleixo territorial.