
Guarda memórias de tempestades de areia, vividas na primeira infância, a partir de uma mudança familiar profissionalmente determinada. “O meu pai, que é engenheiro civil, conseguiu trabalho na Arábia Saudita. Houve uma altura em que vivemos no deserto, porque estavam a construir uma autoestrada”, conta Milton Gulli, nesta conversa com Georgina Angélica e Paula Cardoso.
Filho de moçambicanos que se estabeleceram em Portugal depois do 25 de Abril, o músico adianta que perante a falta de oportunidades em terras lusas, a família acabou por se deslocar novamente, dinâmica que se tornou habitual.
“Os meus pais sempre viajaram muito, e levaram-nos a muitos sítios. Então, temos desde pequenos uma visão alargada do mundo”, revela Milton, que conjuga as recordações no plural, por serem indissociáveis das duas irmãs.
Foi também em família que, em 2006, Moçambique se tornou destino de férias. “Ficámos lá um mês, e para mim e as minhas irmãs foi um bocado um choque cultural porque tínhamos uma ideia um bocado romantizada do país”.
A desconstrução da imagem criada em Portugal passou por um reconhecimento do território: “Eu sempre achei que em Moçambique se falava português no país todo. Não é verdade. Fala-se português nas cidades, mas fora das cidades pouca gente fala”.
Mais do que desfazer mitos linguísticos, Milton assinala os perigos de uma ilusão lusófona.
“Acho que muito português acaba por ter a ideia de que quando vai para os PALOP a cultura, os costumes e a maneira de estar são iguais”, nota o músico, perentório na desagregação: “Não são”.
Entre as narrativas sobre Moçambique e a realidade, o músico quebrou fronteiras – “Hoje vejo África de outra maneira, é um continente riquíssimo, com muito potencial humano” –, e traçou novas rotas: cerca de cinco anos depois da viagem familiar, trocou Lisboa por Maputo.
“Regressei muito diferente. Estive lá quase dez anos, e sinto que cresci bastante. Fiquei mais atento, mais cuidadoso, e com mais paciência”.
As vivências ganham expressão no primeiro álbum a solo de Milton, intitulado “Quotidiano”.
Lançado em 2022, ano em celebrou 25 anos de carreira, o disco é descrito pelo músico como um retrato do dia-a-dia na chamada Pérola do Índico, e uma homenagem ao seu povo.
“Sempre toquei com várias bandas e vários artistas. Nunca tinha pensado fazer um projeto a solo, mas quando cheguei a Moçambique comecei a compor várias coisas que não encaixavam em nenhum dos projetos que tinha”.
Com um currículo artístico que inclui referências como os Philarmonic Weed e Cool Hipnoise, Milton celebra, no próximo dia 4 de setembro, no Lux Frágil, em Lisboa, os 20 anos dos Cacique’ 97.
A história desta banda, e o despertar musical vivido na adolescência, na Ilha da Madeira, são recordados neste episódio d’ O Tal Podcast, no qual o artista, partilha como o encontro com Azagaia, ícone moçambicano falecido em 2023, continua a marcar a sua trajetória. “O papel dos artistas é muito importante, porque a arte tem de questionar, criticar, apontar o dedo”.
Siga mais uma conversa d'O Tal Podcast junto de Paula Cardoso e Georgina Angélica.
O Tal Podcast é um podcast semanal dedicado às relações interpessoais e aos afectos humanos. Através de conversas profundas com convidados notáveis, o podcast revela uma narrativa original e abre as portas a uma comunidade internacional de reflexão e de interesse.
Pioneiro na cultura negra e afro-descendente em Portugal, é um espaço onde cabem todas as vidas, emocionalmente ligadas por experiências de provação e histórias de humanização.
Em longas conversas sem guião, Georgina Angélica e Paula Cardoso apresentam convidados especiais, em novos episódios, todas as quintas-feiras nos sites do Expresso, SIC e SIC Notícias ou qualquer plataforma de podcasts.
Georgina Angélica é especialista em Educação e Intervenção Social. Atua como educadora, formadora e palestrante, com mais de 20 anos de experiência em Portugal, Inglaterra e Angola.
Paula Cardoso é fundadora da rede Afrolink e autora da série de livros infantis ‘Força Africana’. É ainda apresentadora do programa de TV "Rumos" , transmitido na RTP África.
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