
A mais recente “grande ideia” saída da Assembleia Municipal de Lisboa foi a de concluir que a cidade não tem excesso de turismo e que a solução para esse pretenso problema passa por dispersar os turistas para outras zonas como o Beato, Marvila, Ajuda e Olivais. Traduzindo: é hora de converter os últimos redutos autênticos que nos restam em novas atrações turísticas.
Nos primórdios da economia agrária, era exatamente isso que se fazia com os terrenos agrícolas: eram explorados de forma intensiva até à sua total exaustão e, chegados a esse ponto de esgotamento, passava-se para o seguinte, repetindo o ciclo até não restar nada de fértil. Na Revolução Industrial, aplicou-se a mesma lógica às fábricas: deixámos que indústrias inteiras envenenassem o solo, contaminassem lençóis de água e destruíssem recursos para sempre. Hoje, na era dos serviços turísticos, a história repete-se com outras cores: quarteirões convertidos em hotéis, ruas inteiras rendidas a lojas de souvenirs, transportes locais congestionados de visitantes. Tudo isto numa lógica de exaustão até passarmos para o próximo lugar – que pode ser um bairro de Lisboa, ou uma costa alentejana. O importante é voltar a explorar um “terreno fértil” antes que seja inevitavelmente “contaminado”.
Durante décadas, o Algarve reinou sozinho como o destino de turismo internacional de Portugal, mas quando a receita “sol + praia” das férias de verão começou a ser acompanhada pelas “escapadelas urbanas” durante todo o ano, Lisboa e Porto pularam para o centro da estratégia governativa para o turismo. A narrativa era sedutora: distribuir turistas e riqueza por todo o território e durante todo o ano e não apenas no Algarve. Obviamente, não se tratou de transferir visitantes de um sítio para outro; o Algarve não “dispersou” turistas para Lisboa ou Porto; surgiram, sim, “turistas novos” e o Algarve seguiu a trajetória de sempre.
No dia em que abrirmos o Beato, Marvila e afins à indústria turística, não haverá menos gente no Chiado, em Alfama ou em Belém – haverá, isso sim, ainda mais zonas rendidas de Lisboa ao mesmo modelo socioeconómico que vemos proliferar no resto da cidade e é justamente esta monocultura do turismo planeada pelos poderes públicos que mata as cidades.
O problema, na realidade, nem sequer são os turistas; são os agentes económicos e políticos viciados no turismo. Por detrás da retórica da “dispersão” está, no fundo, a preparação de uma narrativa de licenciamentos municipais para replicar a mesma fórmula no resto da cidade – agora legitimada por um estudo não científico e feito à medida pela Comissão Permanente de Economia, Inovação e Turismo da Assembleia Municipal e que tem essa grande vantagem de conseguir manipular a generalidade da população com um raciocínio aparentemente lógico e credível. Cidades como Amesterdão e Barcelona já experimentaram esta pseudossolução de dispersão e, perante os péssimos resultados, Amesterdão decidiu travar: não há novas licenças para hotéis na cidade, pouco importa onde; para abrir um novo, outro terá de fechar e ceder o mesmo número de camas. Em Barcelona, algumas linhas de autocarro deixaram de aparecer nos mapas do Google para garantir que são usadas somente pelos residentes, uma vez que já não conseguiam entrar nesses transportes para irem trabalhar devido ao afluxo de turistas.
Lisboa precisa, com urgência, de zonas sem operadores económicos dedicados exclusivamente ao turismo: espaços onde não haja hotéis, nem lojas de “lembranças de cortiça” fabricadas na China, nem “brunchódromos” de Lattes Machiattos com espuma dos Himalaias ou ovos benedict de codorniz dos Andes. Lisboa não precisa de dispersar turistas; precisa de salvar a vida que ainda lhe resta com zonas onde os turistas que por lá passem descubram que o melhor de uma cidade é poder observá-la sem que tudo tenha sido feito para lhes vender qualquer coisa. Os políticos que quiserem salvar Lisboa têm de começar por dizer “Aqui, não!” E, acreditem, os primeiros a agradecer serão os próprios turistas.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo//Escreve semanalmente no SAPO