Se um polícia municipal souber que alguém está a cometer um crime, deve deixá-lo sossegado. Esteja o sujeito a servir comida podre num restaurante clandestino sem querer saber de regras de higiene ou da economia, dedique-se a roubar carteiras ou opte por vender produtos falsificados a turistas incautos, o seu papel é contactar a PSP e aguardar pacientemente que alguma coisa aconteça. Igualzinho ao estimado leitor, não fosse ele poder passar multas a quem estaciona mal e castigar quem faz demasiado barulho na vizinhança.

Exagero, claro, a Polícia Municipal também faz muita coisa que poucos estão dispostos a cumprir, como garantir que os velhotes estão seguros em casa ou assegurar que os miúdos saem da escola em segurança. Mas quando o crime espreita, não lhe cabe intervir. Nem pode, ou será acusada de usurpar funções e a abusar de uma autoridade que não tem. E isso é imperdoável e obviamente merecedor de queixa e até talvez recompensa ao criminoso.

O Grupo Parlamentar socialista chegou ao ponto de sugerir que os agentes municipais (que são PSP como os demais, mas destacados para servir a cidade) que tenham "comportamentos abusivos e ilegais" (leia-se, detenham pessoas que violam as leis) sejam "responsabilizados" e ao município sejam assacadas as consequências pela "ilegalidade" da ação sobre os criminosos, incluindo "indemnizar os cidadãos lesados com o comportamento abusivo e ilegal daquela Polícia Municipal".

Vamos por partes: sim, a lei tem de ser respeitada por todos, e especialmente por aqueles cuja função é garantir o seu cumprimento, que não devem extravasar o seu âmbito de ação. Mas todo este tema está mergulhado em águas turvas e barreiras incompreensíveis.

Ora o que diz a lei? Que um polícia municipal, sempre que veja acontecer um crime público (homicídio, rapto, violência doméstica, furto e roubo com violência, entre outros) ou semi-público (agressão, ameaça, burla e outros semelhantes), tem poder para deter o criminoso se o apanhar em flagrante delito, devendo de imediato entregá-lo à PSP. O que não pode? Fazê-lo quando estão em causa crimes particulares ou se não apanhar o bandido em pleno ato. Mesmo que seja um suspeito reconhecido e reincidente. Mesmo que tenha sido identificado como autor de uma violação à lei.

Quer isto dizer que se um agente se cruzar com uma pessoa que leva na mão uma dezena de carteiras alheias não pode fazer mais do que ligar para a PSP e contar o que viu. Ou se ouvir os gritos de alguém que vê levarem-lhe o carro, um polícia municipal não deve acudir, mas antes assistir e tomar notas para informar a PSP. Multá-lo porque estacionou onde não devia? Isso, sim, o agente municipal pode. Como pode e deve fiscalizar obras e eventos. Mas montar operações para deter quem vende aos turistas bifes que já serviram ratos e baratas, num apartamento esconso da cidade onde dormem 60 pessoas, isso é que não pode ser! Mas isto faz sentido em que cabeças?!

Na cegueira de fazer valer o argumento de que não há mais insegurança, tem valido tudo. Até comparar dados com 25 anos de diferença, descurando a evolução e a regressão que se escondem no meio, incluindo a inversão recente da tendência de diminuição da criminalidade participada e sobretudo no que respeita a crimes graves e violentos, facilmente visível para quem não se limita a engolir as papas mastigadas que lhe servem.

Evolução da criminalidade
Evolução da criminalidade

Enquanto em Portugal se debate se a insegurança nas cidades é uma realidade ou uma "perceção" vendida por populistas, França prepara-se para alargar os poderes da polícia municipal. Não se pretende equiparar poderes aos das forças nacionais, naturalmente, até porque esta força policial tem o respetivo autarca aos comandos, não o MAI. Mas a comissão encarregada de estudar a proposta concluiu que "os cidadãos querem respostas rápidas desta primeira polícia, cuja ação é de proximidade e deve ser mais eficaz". "É preciso dotar a PM de meios de ação adequados, em lugar de se manter a dependência dos órgãos nacionais, e criar uma continuidade de ação de segurança entre a polícia nacional, a gendarmerie e a polícia municipal", frisou há dias a porta-voz no Senado, Jacqueline Eustache-Brinio. Que vinca: "A verdade é que os agentes municipais são os que diariamente são confrontados com os problemas, pelo que devem ter meios adequados para enfrentar" a criminalidade nas cidades.

Mesmo aqui ao lado, independentemente de Espanha ter não apenas forças de segurança nacionais como também órgãos autonómicos, quer em Madrid quer em Barcelona as polícias municipais têm sido fundamentais na manutenção da segurança das cidades. Só em julho, a Policía Municipal de Madrid deteve mais de 800 pessoas por violações da lei tão distintas quanto a falsificação de documentos, roubos e furtos violentos, ameaças e maus tratos, ou incumprimento das regras de saúde pública. E as estatísticas da Guàrdia Urbana de Barcelona apontam mais de 6 mil detenções num ano.

Por cá, a ação das forças de segurança só é notícia quando cumpre a narrativa do "abuso" num país "super seguro" e a ideia de aumentar a presença policial nas ruas é "perigosa política securitária". Perante um criminoso, um segurança de centro comercial tem mais poder do que um Polícia Municipal. E quando o número de agentes da PSP está na fasquia dos 20 mil, um terço deles com mais de 50 anos, a discussão que faz manchetes é a que só serve para fragilizar as polícias e a autoridade.

"Portugal é um país seguro". Resta saber até quando.