Em Setúbal, o movimento associativo é um reflexo da história própria cidade: diversificada, resiliente e em constante transformação. Com raízes que remontam ao século XIX, coletividades como a Sociedade Musical Capricho Setubalense e a Sociedade Musical Recreativa União Setubalense mostram que a cultura e o associativismo continuam vivos, apesar das dificuldades. Mas o que mantém estas associações de portas abertas após mais de um século de história?

Sociedade Musical Capricho Setubalense: Música como linguagem universal

Fundada em 1867, a Capricho é um dos pilares históricos da cidade. Nasceu como uma banda filarmónica, mas ao longo de quase 160 anos expandiu-se para abraçar novas linguagens musicais como o jazz e improvisação, sem nunca abandonar o coração filarmónico.

“A escola de música é o nosso motor”, explica a direção. Com cerca de 200 alunos, a Capricho forma músicos a partir dos 3 anos e sem limite de idade, promovendo o espírito de tocar em conjunto, ouvir o outro e criar solidariedade entre os músicos. A música é muito mais do que técnica: é criar laços sociais e uma forma de integração.

“Também se aprende a tocar em conjunto a ouvir o outro, a ouvir o outro instrumento, a ter um sentido de solidariedade quando se toca. Não queremos que o outro faça má figura, o outro também nos suporta, portanto, é este sentido de comunidade que é também distintivo”, afirma Eduardo Ribeiro, membro da direção.

Mais do que formar músicos profissionais, a Capricho forma cidadãos criativos, mantendo um modelo de ensino informal, mas comprometido com a excelência artística. Essa liberdade permite explorar repertórios diversos e abrir espaço para culturas musicais globais, tal como refere Sérgio Gabriel, Presidente da Capricho.

Quando a programação artística e toda a criação parte num pressuposto de haver liberdade total, torna-se mais fácil eliminar quaisquer barreiras que existam. Nós temos um conceito de partilha, as barreiras tendem a diluir-se, e é mais fácil trabalhar no espectro total da música, seja ela qual for. Por exemplo, eu entrei aqui por via do jazz, mas aos poucos e poucos, aprendi a respeitar e a ter grande curiosidade pela música filarmónica, que era uma sonoridade diferente daquela que me trouxe aqui pela primeira vez”, acrescenta Eduardo.

Eduardo destaca o sentido de comunidade que vive e persiste na Capricho: É esse o nosso ponto forte. Tivemos muitos músicos da Banda Filarmónica a participar nas marchas de Setúbal. Portanto, isso é cultura, isso é participação. E nós pelo meio da música acabamos por estar sempre envolvidos na cidade”.

“No 25 de Abril de 1974 fomos nós tocar para a rua e na inauguração das estátuas do Bocage. Em todos os momentos importantes da cidade estivemos presentes. Temos uma participação no festival de jazz de Setúbal. Somos parceiros. Vamos ter um encontro de escolas de jazz do sul do país. Ás vezes abrimos aqui a caixinha e há muita coisa a sair, mas é sempre com esse norte que é fazer ligações, pôr mundos diferentes a comunicar uns com os outros”, conclui.

“A questão da demografia atual da cidade também retirou algumas pessoas que viviam aqui mais próximo, mas trouxe-nos outras, por exemplo, os novos emigrantes. Temos aqui bastante estrangeiros na escola, de todas as nacionalidades. A forma de estar na vida de uma sociedade é esta, ter as portas abertas e poder auxiliar dentro daquilo, das armas que se têm e das ferramentas que se têm”, afirma Sérgio Gabriel.

A Capricho tem enfrentado desafios financeiros, especialmente com os custos da banda filarmónica, a manutenção de instrumentos e o pagamento ao maestro. Apoios da autarquia e da União de Freguesias são fundamentais.

“Normalmente precisamos de apoio financeiro. Com a banda filarmónica temos logo uma despesa acrescida fixa, que é a remuneração do maestro. Isto é diferenciador relativamente às coletividades que não tem banda filarmónica”, diz Sérgio.

“A manutenção dos instrumentos que é muito cara. Continuamos com o IVA a 23% na aquisição dos instrumentos. A União de Freguesias ofereceu-nos as novas fardas. Toda esta logística é bastante dispendiosa. Temos apoio financeiro através de protocolos das bandas filarmónicas. E depois temos o festival de bandas que organizamos. Vamos para a 22ª edição. E temos muito amor e carinho e apoio logístico sempre que precisamos”, conclui.

Durante a pandemia, a Capricho foi uma das poucas bandas que conseguiu manter-se ativa, adaptando-se às restrições. Isso mostra a força do movimento associativo local e a importância não só cultural, mas também social. Sérgio explica que “foi muito difícil manter a banda. Utilizámos, dentro das regras, tudo o que estava a nosso dispor para manter a banda. Fazíamos por grupos separados, inventámos medidas de higienização, mas conseguimos”.

União Setubalense: Uma porta sempre aberta à cultura

Fundada a 22 de março de 1899, com 126 anos, a União Setubalense é outro exemplo da vitalidade do associativismo setubalense. Tal como explica Rute Vieira, Presidente da direção, “surgiu exatamente com uma banda filarmónica cá em Setúbal, juntamente com a Capricho na altura. Sempre teve uma história ligada à música, com as bandas filarmónicas, com banda de jazz, música ao longo destes 126 anos”.

Após anos difíceis causados pela pandemia, a associação vive hoje uma fase de rejuvenescimento, impulsionada pela entrada de novos sócios e uma direção renovada. “Na direção anterior tivemos um presidente com menos de 40 anos, o que não é assim uma coisa muito comum numa coletividade tão antiga e tão histórica, e agora sou eu, que já tenho mais de 40, mas também não é muito comum ser uma mulher. Aliás, na nossa direção são mais mulheres do que homens o que também não é de todo comum. Somos cinco mulheres e quatro homens”.

A filosofia é simples: abrir as portas à cultura. Sem protocolos financeiros ou interesses comerciais, a União cede o seu espaço a grupos de teatro, coros, oficinas, debates e eventos variados. Iniciativas como o grupo Vozes do União, que convida qualquer pessoa a cantar em coletivo, mostram o compromisso com a inclusão e com o fortalecimento de laços sociais através da arte.

Mesmo sem sede própria (o edifício é alugado), a União resiste à especulação imobiliária e à falta de financiamento direto com criatividade e entreajuda. “Não nos deram o peixe, deram-nos a cana para pescar”, resume Rute Vieira, presidente da direção ao relatar o apoio municipal para a renovação do telhado do edifício.

O Presidente da Câmara de Setúbal, André Martins, “anunciou a ajuda e as obras começaram o ano passado e acabaram agora em março de 2025. Não nos deram dinheiro, mas deram-nos a cana de pesca para podermos trabalhar. Eu acho que assim é uma verdadeira ajuda”.

Para Rute, só é possível manter a atividade da União com “a ajuda dos sócios e a ajuda dos voluntários”. Apesar de terem recebido apoios extraordinários durante a pandemia “que a Câmara deu a todos, mediante uma série de critério”, também afirma que “é um grande apoio” a participação na Fest´Asso, uma iniciativa dedicada ao movimento associativo da União das Freguesias de Setúbal.

Contudo, Rute explica que “quem cá está atrás do balcão, quando temos atividades, são voluntários. Está aqui a Rosa a cozinhar, que é da direção e voluntária. O João Rato, que é o tesoureiro, anda a fazer compras. Temos o Sr. Francisco, também, da direção, que quando é preciso arranjar alguma coisa aqui, tem essa mais-valia. Temos uma Helena que vem para cá ajudar também. Vamos assim, entre todos, dar aquilo que conseguimos, que a maior parte das vezes é tempo e disponibilidade”.

Na União, o coletivo é mais do que conceito: é prática diária. Os eventos são organizados por voluntários, os almoços são cozinhados por membros da direção e cada euro é contado. Ainda assim, o ambiente é de entusiasmo e estão “abertos a tudo”. “Este rejuvenescimento da direção foi atraindo, e é inevitável, o amigo deste ou o amigo daquele, e torna-se sócio, e depois dá ideias. E isto acaba por acontecer em todas as associações e coletividades. Acaba por ser dinâmico. Não é imposto. Nós recebemos muitos pedidos de iniciativas. Estamos abertos, realmente, a tudo. Só que, realmente, nisso tudo, está mesmo tudo. E há outras que estão abertas a tudo, mas…”.

Desafios comuns, respostas distintas

Tanto a Capricho quanto a União Setubalense partilham os mesmos desafios: falta de financiamento estável, dificuldade em atrair e manter jovens dirigentes, pressão urbana, e necessidade constante de adaptação.

“Os jovens não estão muito presentes, pelo menos aqui na cidade, no movimento associativo. Pelo menos no movimento cultural. Eles participam, mas ser um dirigente associativo já é outra questão”, afirma Sérgio, e acrescenta que “ um público jovem é diferente de diretores jovens. Em Portugal ser um jovem diretor é ter quarenta anos. Só que para estares disponível com quarenta anos para seres diretor tens que já lá estar algum tempo”.

Ambas reconhecem que a sobrevivência do movimento associativo depende da capacidade de escutar e integrar diferentes gerações. A Capricho aposta na escola de música para atrair os mais novos; a União responde com matinés dançantes dos anos 90 e eventos culturais como iniciativas de apoio à Palestina ou a primeira oficina digital a “ explicar como é que se pode preservar os nossos dados”.

O grupo de música “Vozes da União” é também uma forma de atrair mais pessoas através de “um grupo de pessoas que quer cantar, de todas as idades, tenham ou não experiência”. O projeto começou em setembro de 2023 e “já tiveram várias atuações ao vivo”.

Rute Vieira, considera que o rupo também permite dar formação músical aos jovens, de forma indireta. “Formação musical não temos, não ensinamos instrumentos. O que se partilha aqui é o gosto de cantar com as “Vozes da União”, mas a formação vem de muito mais. Se tivermos a porta aberta com concertos, com oferta cultural, isso também entra na formação. Temos uma porta aberta, uma cultura acessível, e quem quiser, vem cá”.

O papel social também é central: desde a inseção de mensalidades a quem não pode pagar, acolhem imigrantes e contribuem para a integração através da música e da cultura. Como afirmam os dirigentes da Capricho, “O que nos une aqui é a música. Muitas vezes não precisamos comunicar muito bem. Porque a língua universal, ela é a música. E isso, para nós, é logo uma barreira que se quebra”, diz Sérgio.

A Cultura como identidade e resistência

Em Setúbal, o movimento associativo cumpre uma missão muitas vezes negligenciada pelo Estado: garantir o acesso à cultura e à educação informal, a preços acessíveis. Como lembra a Presidente da da União Setubalense, Rute Vieira “o orçamento da cultura não chega a 1% em Portugal. Mas sem cultura, não há identidade, nem democracia.”

A presença ativa destas coletividades em momentos históricos da cidade, desde o 25 de Abril às Marchas Populares, confirma o seu papel na construção da identidade setubalense. Seja pela filarmónica da Capricho ou pelas atividades culturais da União, o associativismo local é resistência contra a homogeneização cultural, a exclusão social e a indiferença política.

Rute Vieira sublinha em relação à guerra na Palestina que “nós estamos a ver o que está a acontecer nos nossos telemóveis. E é com orgulho que digo que esta voz daqui da União não se cala perante isso. E Setúbal sempre foi uma cidade de luta, sempre foi uma cidade muito marcada pela contestação por melhores condições de vida, melhores condições de trabalho”.

Para a Presidente da União “tudo é política” e “existe assumidamente esse lado, porque estar aqui a dar uma conversa a um jornal, é político. Onde eu estacionei é uma questão política. Uma reunião de condomínio é política. Cada pessoa é um agente importantíssimo, porque um pode não fazer nada, mas muitos fazem muito”. Acrescenta que a “União Setubalense é aberta para todos, quem vier por bem. Não tem uma ligação partidária, mas ter uma coletividade aberta é um ato político”.

Um Movimento em constante evolução: “Nós estamos cá”

Setúbal vê também o surgimento de novas associações, como a All Aboard, um projeto que se inicou em 2021, mas com uma missão: “tornar o desporto acessível a todos” e “levar o skate a todas as pessoas, sem olhar a idade, género, condição física ou contexto social”, para que todos “tivessem a oportunidade de sentir a liberdade sobre rodas”.

A CASTOR é outro exemplo de uma associação mais recente em Setúbal, Portugal, cujo objetivo é “promover a cultura em todas as suas formas”, através da organização de “workshops, noites de cinema e música, caminhadas, jogos de tabuleiro, encontros sociais e gastronómicos”. O objetivo, afirmam, é “fornecer uma plataforma para novas iniciativas e artistas, e dar a toda a comunidade, especialmente aos jovens, a oportunidade de experimentar coisas novas”.

O movimento associativo setubalense é uma rede em constante evolução, que liga tradições com novas formas de expressão.

Mais do que nostalgia, o que se respira em Setúbal é reinvenção. As coletividades não estão presas ao passado: honram-no, sim, mas com os olhos postos no futuro. E se depender da vontade de quem ali se entrega todos os dias, com paixão e generosidade, o movimento associativo de Setúbal continuará a ser exemplo de resiliência e inclusão.

Para Sérgio o movimento associativo não precisa de “reinventar-se, mas adaptar-se. Os tempos vão mudando e com a velocidade que o mundo tem mudado, nomeadamente na comunicação, na forma como as camadas mais jovens comunicam e onde estão presentes as questões das redes sociais”, “mas estamos a falar de uma série de coletividades do movimento associativo em Setúbal e muitos deles têm mais de 100 anos, mais de 80 anos, portanto alguns no tempo passaram por desafios semelhantes ou parecidos ou até mais difíceis”.

Termina com uma mensagem positiva: “Nós acabámos por vir de uma das épocas mais dramáticas para o movimento associativo, a pandemia. Se as associações, os agrupamentos, os grupos desportivos conseguiram sobreviver aos anos dramáticos, em que nós deixámos de conviver, de certeza que têm força para enfrentar outros desafios.

Nós estamos cá.

Já passou essa (a pandemia), já passou a Implantação da República, a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial”.

Rute Vieira deixa claro que “defender a liberdade e a cultura é defender a existência de todas as coletividades”. “É defender a liberdade de pensamento. Sem isso não há sequer democracia”.