Se apenas costuma beber cerveja ao final do dia ou com alguns petiscos específicos, o melhor é saber o que Teresa Apolónia, Grã-Mestre da Confraria da Cerveja, tem a dizer. Acredita que, tal como o vinho, esta é uma bebida bastante versátil que pode também ser usado num contexto de harmonização.

"Cervejas refrescantes, como lager ou witbier, harmonizam bem com peixes grelhados ou queijos frescos, pratos picantes ou condimentados fazem um par perfeito com cervejas mais amargas e cítricas como as pale ale. Pratos com sabores intensos, e mesmo as sobremesas, são potenciados se associados a cervejas mais escuras”, revelou em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, no âmbito do Dia Internacional da Cerveja.

"A cerveja tem trilhado o seu caminho para mostrar ao público a sua enorme diversidade e a quantidade de estilos adequados para cada momento ou altura do ano, tal como o vinho", continua.

Ao ser a primeira Grã-Mestre da Confraria da Cerveja, Teresa Apolónia, falou ainda dos desafios que este cargo acarreta e como esta bebida, por vezes muito direcionada para os homens, tem feito também uma evolução junto do público feminino.

“Acredito que a minha nomeação reflete a própria evolução do setor cervejeiro e da sociedade portuguesa: um setor cada vez mais inclusivo, diverso e que reconhece o papel de cada um independentemente do género."

Como descreveria a evolução do gosto dos portugueses pela cerveja nas últimas décadas?

A cultura cervejeira em Portugal tem evoluído significativamente nos últimos anos. Há muito que deixámos a realidade da “meia-dúzia” de estilos comercializados e assiste-se agora a uma enorme diversificação que desafia paladares e aquilo que as pessoas pensam sobre cerveja. Isto deve-se, essencialmente, a dois fatores: por um lado as grandes marcas, que alargaram significativamente a gama de estilos que colocam no mercado. Por outro, o crescimento do movimento das cervejeiras artesanais e de microcervejeiras, cuja imagem de marca tem sido, precisamente, a experimentação. De novos estilos, de novos processos de produção e até de novos ingredientes, muitas vezes ligados às suas zonas de origem e que levam os consumidores a ter uma ligação mais forte com as suas propostas. Com os anos, estes fatores têm levado a que o consumidor esteja mais informado, seja mais crítico e queira experiências mais diversificadas.

Agora existem muitos mais tipos de cerveja disponíveis, como as artesanais, por exemplo. Esta procura por inovação vem mais da indústria ou do consumidor?

As cervejeiras artesanais têm desempenhado um papel relevante na diversificação dos estilos disponíveis, precisamente por que têm ajudado a expandir os horizontes sobre o que é a cerveja e com que momentos se harmoniza. No entanto, diria que o aumento exponencial dos estilos de cerveja é da responsabilidade, tanto dos consumidores, como das próprias empresas. Por um lado, hoje há muito mais informação, desde a proliferação de cursos e workshops sobre produção e apreciação de cerveja, aos fóruns onde especialistas e amantes de cerveja falam e escrevem sobre esta bebida. Com mais fontes de conhecimento, as pessoas querem experimentar diferente. As marcas, bem cientes desta realidade, respondem com novas propostas que vão ao encontro dessa necessidade de experimentação.

Acha que Portugal já tem uma 'identidade cervejeira', um estilo de cerveja, a par de países europeus como a Alemanha? Ou o foco português continua no vinho?

A tradição cervejeira de países como a Alemanha, a Bélgica ou a Chéquia não é comparável à realidade portuguesa. Nestes países, a ‘identidade cervejeira’ remonta, não raras vezes, à idade média, com leis de produção, estilos e marcas que já têm várias centenas de anos e que estão fortemente enraizadas na cultura gastronómica destes países. Em Portugal, a tradição é bastante mais recente, pelo que não existe propriamente um estilo associado ao nosso país. No entanto, vejo isso com bons olhos. Isto significa que os consumidores portugueses que se interessam por cerveja têm menos amarras culturais e estão mais disponíveis para experimentar estilos vindos dos quatro cantos do mundo. Quanto ao vinho, não acredito que devamos falar em focos. É inegável a longa tradição vinícola portuguesa, mas, não raras vezes, os grandes apreciadores de vinho são também grandes apreciadores de cerveja e vice-versa.

A verdade é que a melhor cozinha também pode ser associada à melhor cervejaAcha que a cerveja continua a ser vista com menos prestígio em comparação com o vinho?

Não acho, de todo. Sobretudo se tivermos em consideração o reforço da cultura cervejeira portuguesa de que temos vindo a falar, bem como o refinamento do gosto, do conhecimento e das preferências dos consumidores portugueses. A cerveja tem trilhado o seu caminho para mostrar ao público a sua enorme diversidade e a quantidade de estilos adequados para cada momento ou altura do ano, tal como o vinho. Acredito, sobretudo, que quem é verdadeiramente apreciador, seja de cerveja, de vinho ou de ambas, tem um entendimento mais alargado que leva a compreender os momentos e ocasiões de duas bebidas diferentes, que habitam em espaços próprios, que têm as suas próprias mais-valias e heranças, mas que existem em harmonia numa cultura gastronómica portuguesa onde há espaço para todos.

O ato de beber uma cerveja pode ser tão rico como o de provar um vinho?

Sem dúvida. Quem se dedica a conhecer esta bebida, a aprender sobre ela e o seu significado cultural, bem como a experimentar cervejas que vão para lá das lagers que dominam o consumo português, rapidamente percebe que há cervejas ideais para cada momento. Por exemplo, embora possa pensar-se que a harmonização gastronómica é um fenómeno que se associa apenas ao vinho, a verdade é que a melhor cozinha também pode ser associada à melhor cerveja. Cervejas refrescantes como lager ou witbier harmonizam bem com peixes grelhados ou queijos frescos; pratos picantes ou condimentados fazem um par perfeito com cervejas mais amargas e cítricas como as pale ale. Pratos com sabores intensos, e mesmo as sobremesas, são potenciados se associados a cervejas mais escuras, fruto das suas notas de café, como as porter ou as stout. Paralelamente, como sabemos, numa cultura tão fortemente socializante como a portuguesa, a cerveja surge inegavelmente como a parceira ideal para os melhores momentos entre amigos. Costumo dizer que o limite para encontrar os melhores momentos para beber uma cerveja é a imaginação.

O Dia Internacional da Cerveja é uma oportunidade de celebração, mas também de reflexão. Que mensagem gostaria de deixar aos consumidores portugueses neste dia?

O Dia Internacional da Cerveja é, acima de tudo, um momento de celebração. Celebrar uma bebida que há milénios une pessoas, promove o convívio e faz parte do nosso património cultural e social. A minha mensagem é um convite a que todos celebrem com moderação e curiosidade. Que aproveitem para descobrir a imensa diversidade de estilos e sabores que os nossos mestres cervejeiros em Portugal têm para oferecer, desde as mais tradicionais às mais inovadoras. A cerveja é uma bebida 100% natural, de baixo teor alcoólico, perfeita para acompanhar os mais variados momentos. Afinal, esta é a ocasião perfeita para brindar à cerveja, à sua história e, mais importante, aos momentos de partilha que ela nos proporciona, sempre com um consumo consciente e responsável.

No que diz respeito à promoção do consumo responsável, que ações pratica a Confraria da Cerveja?

A promoção do consumo responsável é um dos pilares fundamentais da nossa missão. Não o fazemos através de campanhas no sentido tradicional, mas sim pela dignificação do ato de beber cerveja. E fazemo-lo em todos os nossos eventos, como o caso das Cerimónia de Entronização, a qual decorreu este ano na cidade de Coimbra com o mote ‘A Arte de Saber Beber’. Isto significa valorizar a cerveja e a sua qualidade e diversidade, promover a harmonização da cerveja com a gastronomia e educar para a apreciação dos diferentes estilos e aromas. Os nossos Confrades, personalidades de relevo de diversas áreas da indústria e da sociedade em geral, tornam-se embaixadores desta mensagem, demonstrando que a cerveja, apreciada de forma adulta e consciente, é perfeitamente compatível com um estilo de vida saudável e equilibrado. A nossa ação é, portanto, de valorização e de exemplo.

Assumir o cargo de Grã-Mestre foi, para mim, um motivo de enorme orgulhoA Confraria da Cerveja ainda não é muito conhecida pelo grande público. Que papel desempenha?

A Confraria da Cerveja é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 2003, com a missão de promover, dignificar e valorizar a cerveja em todas as suas dimensões: cultural, social e económica. Funcionamos como uma rede de embaixadores da cerveja portuguesa. Através das nossas cerimónias anuais de entronização, acolhemos personalidades de áreas tão distintas como a política, a cultura, a gastronomia, o desporto e a comunicação, que partilham a paixão pela cerveja e se comprometem a ajudar a contar a sua história, a valorizar a sua qualidade e a defender o seu lugar no nosso património. Ao longo de mais de 20 anos, já entronizámos mais de 1.000 confrades e confradesas, criando uma rede influente que ajuda a dignificar, valorizar e divulgar a cultura cervejeira em Portugal.

Foi a primeira mulher a assumir o cargo. Sentiu alguma resistência ou surpresa no setor? Que significado teve para si?

Assumir o cargo de Grã-Mestre foi, para mim, um motivo de enorme orgulho, e o facto de ser a primeira mulher a fazê-lo confere-lhe um significado especial. Sinceramente, não senti qualquer resistência. Pelo contrário, senti um grande apoio e entusiasmo por parte de todo o setor. Acredito que a minha nomeação reflete a própria evolução do setor cervejeiro e da sociedade portuguesa: um setor cada vez mais inclusivo, diverso e que reconhece o papel de cada um independentemente do género. Para mim, representa a oportunidade de trazer uma nova perspetiva e de inspirar outras mulheres a afirmarem-se em áreas tradicionalmente vistas como mais masculinas. Afinal, também o mundo da cerveja é para todos.

Quais são os maiores mitos que ainda persistem em torno da cerveja e que gostaria de ajudar a desconstruir?

Existem vários mitos que persistem, mas há alguns que gostaria particularmente de ajudar a desconstruir. Para começar, o mito de que a cerveja é uma bebida pouco sofisticada. Isto não podia estar mais longe da verdade. A cerveja é um universo de uma riqueza imensa, com uma complexidade de aromas e sabores que permite harmonizações gastronómicas, e a crescente cultura da cerveja artesanal tem vindo a prová-lo. Outro ponto é o estereótipo de que a cerveja é uma ‘bebida de homem’. Como primeira Grã-mestre, sinto uma responsabilidade especial em combater esta ideia ultrapassada. O interesse e o apreço pela cerveja são transversais a géneros, e vemos cada vez mais mulheres não só como consumidoras informadas, mas também como mestres cervejeiras, sommelières e líderes no setor. Finalmente, temos o persistente mito da ‘barriga de cerveja’. A verdade é que a cerveja, consumida com moderação, tem um valor calórico inferior a muitas outras bebidas, como refrigerantes ou sumos. O problema nunca está num produto isolado, mas sim no estilo de vida que cada um adota para si mesmo. No fundo, a Arte de Saber Beber transforma a cerveja e faz dela mais do que uma bebida — faz dela uma experiência que junta pessoas, sabores e histórias. É um gesto de inclusão. Quem brinda, não olha a diferenças. Brinda à vida, ao encontro, à partilha. A cerveja é, por excelência, uma bebida agregadora e inclusiva, que pode perfeitamente fazer parte de uma vida equilibrada, porque da mesma forma que desfrutamos de uma cerveja perfeitamente equilibrada, também cada um de nós deve procurar o equilíbrio nas nossas vidas, nas nossas relações e na nossa sociedade.