
Quando o tema escolhido para a 43.ª edição dos encontros promovidos pela Reserva Federal de Kansas, em Jackson Hole, é “Mercados de Trabalho em Transição — Demografia, Produtividade e Política Macroeconómica”, podia antecipar-se um longo exercício académico com pouca ligação à realidade. Mas a intervenção da presidente do Banco Central Europeu (BCE) no passado sábado, último dia do evento, foi tudo menos uma reflexão académica.
Ao iniciar a sua intervenção evocando Alexis de Tocqueville, um dos pensadores políticos mais visionários de sempre e autor dos dois volumes de Democracia na América, Lagarde quis prestar homenagem aos anfitriões do encontro, mas também projetar o seu pensamento numa nova realidade social e económica.
A presidente do BCE foi rapidamente ao cerne da questão: o mercado de trabalho na Europa resistiu a uma política monetária restritiva adotada para combater a inflação. Esta nova realidade, que derrubou teorias consagradas durante décadas, assentou em comportamentos que muitos economistas consideravam impossíveis perante políticas de austeridade.
A realidade é que o emprego na zona euro cresceu: “entre o final de 2021 e meados de 2025, o emprego acumulado aumentou 4,1% – um acréscimo de 6,3 milhões de pessoas empregadas – enquanto o PIB real aumentou 4,3%”, afirmou Lagarde.
Que razões levaram o mercado de trabalho a resistir?
A primeira razão foi uma resposta salarial tardia à inflação. Os trabalhadores passaram a preferir a segurança do posto de trabalho à exigência de salários mais elevados. “A indexação automática formal dos salários à inflação praticamente desapareceu: na década de 1970 abrangia cerca de metade de todos os empregados do setor privado, enquanto hoje se aplica a apenas cerca de 3%. Para mais de metade dos trabalhadores do setor privado, a inflação já não desempenha qualquer papel formal ou automático na fixação dos salários”, afirmou Christine Lagarde.
A quebra do paradigma segundo o qual o aumento dos preços exigia aumento de ordenados funcionou “como um amortecedor”. Segundo a presidente do BCE, “ao ampliar a diferença entre produtividade e custos do trabalho, aliviou as pressões sobre os custos unitários do trabalho e sustentou os lucros das empresas, além de tornar o trabalho relativamente mais atrativo do que o capital. Ambas as dinâmicas incentivaram as empresas a expandir as contratações.”
A segunda razão é ainda mais paradoxal. Há mais pessoas a trabalhar, mas trabalha-se menos horas. “O aumento do emprego na zona euro foi acompanhado por um declínio na média de horas trabalhadas. A média mantém-se 1% abaixo do nível pré-pandemia, o equivalente a cerca de quatro horas a menos por trabalhador por trimestre, ou uma redução na mão-de-obra equivalente a aproximadamente 1,3 milhões de empregos a tempo inteiro.”
Como pode o emprego aumentar quando os trabalhadores trabalham menos horas? Lagarde explicou a aparente contradição: em primeiro lugar, verificou-se uma acumulação de mão-de-obra que permitiu gerir a rotação de recursos humanos sem perda de produtividade e sem aumentos significativos dos custos laborais. Em vários setores, os salários reais sofreram uma quebra, o que permitiu às empresas aumentar os lucros e contratar mais pessoal. Em segundo lugar, a vontade dos próprios trabalhadores em reduzir o número de horas de trabalho não implicou uma descida da produtividade.
Por último, o mercado de trabalho resistiu porque há mais gente a querer trabalhar. E aqui Lagarde colocou o dedo na ferida política aberta em muitos países europeus: os trabalhadores estrangeiros. A presidente do BCE apresentou factos e números: “Só em termos demográficos, a capacidade da Europa para expandir a sua oferta de mão-de-obra já é limitada. Em 2040, a população em idade ativa sofrerá uma redução de cerca de 3,4 milhões. Desde 2002, o número de pessoas com mais de 60 anos aumentou em 28 milhões, enquanto o de pessoas entre 15 e 60 anos caiu em 2,4 milhões e o de pessoas com menos de 14 anos, em 2,8 milhões.”
“Embora representassem apenas cerca de 9% da força de trabalho total em 2022, os trabalhadores estrangeiros foram responsáveis por metade do crescimento da força laboral nos últimos três anos. Sem esta contribuição, as condições do mercado de trabalho poderiam ser mais restritivas”, acrescentou. E deu um exemplo concreto: “na Alemanha, por exemplo, o Produto Interno Bruto seria cerca de 6% menor do que em 2019 sem a contribuição dos trabalhadores estrangeiros. O forte desempenho do PIB da Espanha no pós-pandemia – que ajudou a sustentar o agregado da zona euro – também deve muito à contribuição da mão-de-obra estrangeira.”