O 1-1 marcado pelo Santa Clara ao 98.º minuto do jogo foi o prólogo para minutos fantasmagóricos em Alvalade. Este Sporting, uma equipa com medo de si própria, hesitante, uma entidade sem forma nítida, permitira o empate ao cair do pano e todo o cenário, todo o estádio, toda a noite, abriu a porta para o pesadelo.
Começou a chover. A meia-noite aproximava-se, a temperatura baixava. O público lembrava-se da recente derrota contra o mesmo adversário no mesmo relvado, recordava-se da crise que ainda aí está, tinha a perfeita noção de que este Sporting não é aquele Sporting.
Os fantasmas rondavam Alvalade. Os penáltis pareciam o derradeiro convidado do serão. Até que um presente, caído do céu e da insistência de um sueco viciado em olhar para a baliza, resolveu o problema.
Ou adiou-o, que estes males não se solucionam assim. Aos 113' do Sporting-Santa Clara, Venâncio atrasou a bola sem olhar, sem ver que Gyökeres estava à espreita, sem se lembrar que Gyökeres está sempre à espreita. O melhor marcador do futebol português contornou Neneca, festejou pela 27.ª vez na temporada e, por instantes, travou a tempestade.
Continua a chover em Alvalade. Mas a segunda vitória seguida, mesmo que instável, incerta, caótica, permite respirar melhor, derrubando um Santa Clara que, uma vez mais, confirmou possuir uma competitividade, uma agressividade e um método bem trabalhado como pouco se vê em Portugal.
A festa da Taça em época de festas tem pouco de festivo quando se joga a um dia de semana às 20h45. Com o Sporting em estado de dúvida e inquietação, Alvalade recebeu o jogo com bancadas despidas e ambiento morno, condizente com o nível que os leões têm apresentado. A coisa só aqueceu no epílogo do embate, quando as quezílias e as picardias ganharam papel principal.
Depois de minutos iniciais que ficaram na memória de ninguém, Geovany Quenda pareceu apostado em personificar o estado de espírito do Sporting atual: insólito e desinspirado.
Primeiro o insólito. Aos 14’, o adolescente dispôs de um canto na esquerda, marcando-o de uma forma que, certamente, estaria trabalhada. No entanto, o que, nas intenções e quadros táticos, deveria ser um passe para Debast, tornou-se num gigantesco atraso, com o lance a recomeçar no meio-campo dos locais, tão distante da baliza do Santa Clara como Lisboa está de Ponta Delgada.
Depois o desinspirado. E um desinspirado com toques de recordação. Aos 16’, Catamo, no melhor lance do primeiro tempo, recebeu com classe e cruzou para a área, onde apareceu Quenda, que tinha a baliza aberta e tudo para marcar. No entanto, o remate saiu desviado. Um grande falhanço a ocorrer na baliza Norte de Alvalade, com um canhoto a finalizar um cruzamento vindo da direita, num jogo frente a um adversário com uma ave no símbolo. Bryan Ruiz tem sucessor.
Pouco mais incomodou o Sporting os açorianos na etapa inicial. Depois dos quatro remates enquadrados em todo o desafio para a I Liga contra o conjunto de Vasco Matos, agora os homens de João Pereira apenas fizeram um tiro à baliza na etapa inicial, numa finalização sem perigo de Catamo. Hjulmand ainda teve um golo anulado por mão na bola, mas a organização e o rigor defensivo do Santa Clara dominaram quase sempre a contenda frente a um opositor nervoso, errático, em dúvida. Dúvida perante o jogo, dúvida perante o adversário, dúvida perante si próprio. A exceção para a ordem dos açorianos foi mesmo o presente final de Venâncio.
Pelo sexto encontro consecutivo, o Sporting não chegou ao descanso a vencer. Alvalade, que pareceu começar com um tom compreensivo para com a equipa, ia perdendo a paciência, deixando alguns assobios perto do intervalo.
O recomeço foi, novamente, apático, culminando, novamente, numa grande oportunidade com Quenda na ação: após cruzamento do adolescente, a bola sobrou para Trincão, cujo remate não deu em golo porque Venâncio evitou em cima da linha.
O Santa Clara mantinha-se ultra agressivo em cada lance, numa sucessão de carrinhos e abordagens entre o corajoso e o épico, a tradução em equipa da energia que Vasco Matos transmite a partir do banco. No Sporting, o jogador mais experiente do plantel quis acrescentar nervos e caos a um cenário caótico e de nervosismo: perante a instabilidade que se via no relvado, Ricardo Esgaio, o mais velho do grupo de João Pereira, decidiu protestar enquanto fazia exercício de aquecimento, vendo dois vermelhos seguidos e sendo expulso.
Para cenários caóticos, um jogador caótico. Para uma equipa em formação, a perceber exatamente o que é, um futebolista em formação, a perceber exatamente o que é. Em nova noite indefinida deste Sporting indefinido, um golo de Conrad Harder, o atacante ainda a definir os limites do que é, do que quer ser, do que pode ser.
O jovem dinamarquês saiu do banco aos 72' e, dois minutos passado, finalizou, meio com a barriga, meio com a alma de goleador que possui dentro de si, aproximando os quartos de final do Sporting.
Mas vieram os fantasmas. O Sporting, tal como contra o Moreirense, o Brugge e o Boavista, deixou-se empatar após estar em vantagem. E o 1-1 não surgiu do nada, mas sim de uma insistência dos visitantes em tempo de desconto, contrastando com a falta de estabilidade defensiva dos locais.
A cada bola na área, tremideira. Perigo quando Gabriel Silva cabeceou por cima, perigo quando Guilherme Ramos, numa noite em que pareceu Van Dijk, atirou para uma grande defesa de Israel.
Perigo aos 98', no cúmulo da maldição, com o golo a chegar numa combinação de ex-Sporting. Guilherme Ramos assistiu, Pedro Ferreira marcou.
Chovia muito durante o prolongamento. Talvez fosse o esconderijo utilizado pelos fantasmas, que assim se mantinham entidades ocultas, indetetáveis para a vista, bem presentes para o estado de espírito do Sporting.
A poucos minutos da decisão por penáltis, chegou o presente. Gyökeres agradeceu, deu-lhe sentido de golo, transformou-o em vitória. Os fantasmas não se foram embora, a sensação de uma equipa dividida, em dúvida, sem bases sólidas, persiste.