Está o árbitro à beira da área, ergue o apito com o braço em ângulo reto, o dedo da outra mão a apontar para o objetivo, okay, todos os presentes julgo terem entendido a mensagem, não era necessária uma perspicácia de Sherlock Holmes para os jogadores, quase todos enfiados no retângulo à frente da baliza de Trubin, compreenderem que só escutado o silvo é que Gustavo Garcia poderia fazer um jogo de futebol começar não colocando a bola a rolar, mas arremessando-a, as suas manápulas a serem os primeiros membros a tocarem nela em vez de serem os pés de alguém.

Pegando aos oito minutos, mais exatamente aos oito minutos e cinco segundos jogados há dois meses, o esquizofrénico Nacional-Benfica era reiniciado com um lançamento lateral, das mãos para a molhada, lá foi a bola finalmente devolvida ao jogo que estampou previsões de meteorologistas, augúrios de neblina e relatórios do IPMA na tinta de jornais desportivos. À hora do recomeço, o denso nevoeiro no alto da ilha da Madeira permanecia, circundava o estádio, as imagens de drone atestavam o temperamento nublado da Choupana, mas, sobre o hectare de relva, alguma bruxaria parecia haver.

Na aberta do maldito nevoeiro que adiou a partida e muitas mais haverá de empurrar para outras datas, os madeirenses, nativos deste clima, estiveram a apertar o Benfica nos minutos de arranque, tinham pressão a todo o campo, reclamaram segundas bolas, encostaram sem temores nos adversários. Apareciam para serem duros de lidar. O tempo, enquanto trazia “rabanadas” de nevoeiro de quando em vez, como dizia a minha colega de carteira, Lídia Paralta Gomes, densas nuvens do feitio da Choupana a lembrar que bastava ele querer para o jogo ir de novo para coma induzido, haveria de ser preenchido pela supremacia do Benfica.

Mantendo-se o Nacional a querer pressionar não muito em cima, mas com a equipa subida no campo, os encarnados fizeram por aproveitar os espaços entre os adversários. Sem grandes adornos a meio-campo, despreocupados com ligações e passes no miolo, procuraram os seus mais frenéticos, os atacantes vindos de fora, para se vingarem do nevoeiro. Por duas vezes, a agilidade de Di María serviu remates, um no chicote do seu pé esquerdo que cruzou à cabeça de Pavlidis, outra após ziguezaguear com o seu corpo-esparguete, cruzar rasteiro e Aktürkoglu rematar.

Noutro par de ocasiões, houve Kökçü, o intermitente se bem que incisivo turco, pachorrento em certos vislumbre quando depois é visto a injetar energia em passes, ou nele próprio: da esquerda, onde mais se tem baseado com Bruno Lage, cruzou para a bola ressaltar na relva e encontrar a cabeça de Otamendi perto do segundo poste; mais tarde, numa incursão sua ao sprint pelo centro-direita e por dentro de Di María, zonas não habituais nele, pediu ao argentino o passe que apanhou e remeteu para Pavlidis, de costas, servir novamente um remate de Aktürkoglu.

GREGÓRIO CUNHA/LUSA

Nos quatro flagrantes intrometimentos do Benfica por entre as brumas do nevoeiro da Choupana houve as mãos, ou a perna esquerda, do atento Lucas França, guarda-redes sónico nos reflexos, a muralhar a sua baliza contra a porosa linha defensiva do Nacional, sôfrega com a genica de Di María com bola e o faro do extremo turco a aparecer no lugar certo para finalizar.

Na vez que a atenção e o posicionamento do guardião de nada lhe valeram, não por inaptidão sua, antes pela habilidade alheia, houve a trave a salvá-lo de um remate à distância de Kökçü, badalada inaugural do sino de alerta na segunda parte que continuou a ter um Benfica incisivo a atacar a área. Já sem a bipolaridade do nevoeiro, desaparecido com o acendimento dos holofotes do estádio, os encarnados mantiveram a procura de desequilíbrios por fora, onde Di María não se cingia à sua predileta ala direita e foi ao outro lado para espreitar o remate que desencantar um penálti, ao embater na mão de Ulisses Wilson.

O golo (59’) fez outro guizo soar no radar dos jogadores de Bruno Lage, há dias desleixados na Vila das Aves, onde em vantagem foram amorfos em demasia, amoleceram-se no jogo e o leme que perderiam seria aproveitado pelo AVS. Não foi o caso na Madeira.

Alérgicos aos esconderijos, os três médios deram-se ao jogo, mostraram-se à saída de bola, Aursnes e Kökçü não sumiram dos ângulos de visão de Florentino, a tríplice irrequietação deles manteve as dúvidas na marcação dos jogadores do Nacional e o Benfica foi arranjando vias para os passes saírem. Diminuíram as chegadas à área de Lucas França, aumentou a segurança nas posses, de maior a capacidade para a equipa reter a bola. Os madeirenses, curtos na dependência em Luís Esteves para desencantarem rasgos nas suas tentativas de avançar no relvado, não conseguiam incomodar a estabilidade dos visitantes.

HOMEM DE GOUVEIA

Mesmo com outra raridade nas aproximações à baliza, quando as teve o Benfica irrompeu por fora, quase sempre no jogo exterior. Uma correria de Alexander Bah para se juntar a uma dessas incursões tirou um cruzamento que Gustavo Garcia, trapalhão, cortou para os seus próprios comparsas, para a marca de penálti, onde uma carambola se disputou até a sua sobra ir aos pés de Ángel Di María, um rato de delgada esperteza que sem espaço, quase nenhumas possibilidades, entalado numa vereda de pernas. Vendo-se cercado, o argentino fez o remate passar, docilmente, por entre as tenazes de um adversário. Lucas França não teve comprimento para impedir o segundo golo (74’).

Sem artimanhas de reluzir nos olhos, tão-pouco jogadas de desenho de louvar, o Benfica manteve a mão no jogo sem altos e baixos. Ter às tantas Zeki Amdouni na frente, um atraído por combinações e passes por natureza, ajudou ao certo controlo que houve até ao fim. A dinâmica no flanco direito, por onde Aursnes não se farta de rasgar diagonais e Bah de correr pela linha, foram forçando as condições para Di María, o maior divergente da equipa, fazer das suas. Ainda tirou um cruzamento para a cabeça de Leandro Barreiro mandar a bola ir chatear a barra da baliza.

Quando se ouviu o apito-mestre, a marotice da Choupana já revisitava o estádio, via-se o traço de personalidade do seu microclima que mais desgostos causa ao futebol beijar suavemente as bancadas. Di María tinha um comprido casaco vestido, fora substituído ainda o jogo não terminara. Amainado o talento do argentino, as brumas tinham a veleidade de se voltarem a mostrar. Com ele à solta, o Benfica repeliu-as para ter a vitória que o deixa a um ponto da liderança do campeonato, a pouco mais de uma semana de visitar o Sporting.