Não é apenas no masculino que o futebol tem escrito as suas linhas de história na Arábia Saudita. Nos últimos anos, este país no Médio Oriente tem traçado o seu caminho para chegar a todo e qualquer ponto do globo como tema principal. No futebol feminino não foi diferente.

Com a criação da nova Liga, em 2022/23, chegou o verdadeiro boom de transferências. Aminata Diallo e Kathellen Sousa juntaram-se ao Al-Nassr. Kheira Hamraoui mudou-se para o Al-Shabab. Sara Gunnarsdóttir e até a ex-SC Braga Rayanne Machado passaram a vestir a camisola do Al-Qadisiyah.

E foi mesmo este último emblema que o zerozero usou como porta para saber mais sobre este despertar da Arábia Saudita para o futebol feminino. Afinal, Luís Andrade - antigo coordenador e treinador do Benfica - é o atual técnico da equipa.

«A cinco semanas de iniciar o campeonato, estávamos sem jogadoras»

Luís Andrade iniciou esta ligação ao futebol feminino ainda 2018/19 como coordenador técnico no Benfica - na primeira equipa das águias, aquando da criação da secção. No ano seguinte, assumiu o papel de treinador e, desde então, nunca mais largou o cargo.

Depois de uma temporada e meia ao serviço das águias, onde venceu uma Supertaça, uma Taça da Liga e ainda iniciou o percurso que viria a ditar o primeiro campeonato nacional do Benfica na Primeira Divisão, mudou-se para o Brasil e abraçou o projeto do Flamengo.

A primeira experiência no feminino foi no Benfica @Lado F

No entanto, no verão de 2023, a vida apresentou-lhe outros planos... e também eles longe de casa. Afinal, o treinador natural de Lisboa acabou por se mudar para Al-Khobar, mas com muito trabalho pela frente.

«Fui a Portugal passar férias e surgiu a oportunidade de vir para a Arábia Saudita. Já tinha existido algum feedback em relação à possibilidade de trabalhar aqui, mas não liguei muito. Entretanto, insistiram e aceitei o desafio. Cheguei aqui a 6 de setembro de 2023. Projeto? Zero. Fui eu e a coordenadora que formámos a equipa. Nós não tínhamos atletas. A cinco semanas de iniciar o campeonato estávamos sem jogadoras, sem inscrições. Tivemos de fazer muito pela vida para ter as jogadoras, para poder inscrever», começou por referir, em conversa com o zerozero.

«Nós construímos uma equipa do zero em cinco semanas. Era o segundo ano de futebol feminino na Arábia. No ano anterior, o campeão tinha sido o Al-Nassr e o Al-Qadisiyah entrou nesse segundo ano, sem experiência. As jogadoras não tinham experiência. Nessa altura, muitas nem sabiam o que era um sistema tático, o que era um fora-de-jogo. Tivemos de ensinar o básico: o posicionamento, principalmente sem bola, porque sabíamos perfeitamente que íamos estar mais tempo sem bola do que com bola. Foi assim que crescemos e evoluímos.»

Nesse primeiro ano de projeto do Al-Qadisiyah, o emblema terminou no quarto lugar do Campeonato Nacional e somou apenas três derrotas em 14 jornadas. «Ninguém acreditava que éramos capazes de superar o Al-Ittihad e o próprio Al-Hilal. Nós só fomos superados, nesse ano, pelo Al-Nassr. Fizemos um ano fantástico.»

A preparação seguiu para a temporada 2024/25 com a ambição de fazer mais e melhor, mesmo sendo ainda um projeto muito recente. Com essa mentalidade, Luís Andrade recordou as mais recentes contratações, mas também a caminhada que o emblema está a traçar.

qNós construímos uma equipa do zero em cinco semanas, tivemos de ensinar o básico
Luís Andrade

«Este ano, houve uma aposta mais forte. Contratámos jogadoras estrangeiras com algum nome. Fomos buscar a Sara [Gunnarsdóttir] que estava na Juventus, a Lindsey [Harris]. A Rayanne [Machado], a Ajara [Nchout].... Fomos buscar um lote de jogadoras que nos ajudavam a fazer a ligação com as jogadoras sauditas», mencionou.

«Contratei a Adriana [Leal] no mercado de inverno. É uma atleta que toda a gente conhece. Foi uma transferência com um valor muito, muito elevado. É uma grande aposta da Arábia Saudita no futebol feminino. Entretanto, contratámos algumas jogadoras de segunda linha na Arábia Saudita. Eram jogadoras que não eram opção nos outros clubes. Sabíamos do valor delas. Sabia que, trabalhando, elas poderiam evoluir.»

«Começámos mal. Perdemos os dois primeiros jogos e empatámos o terceiro. Entretanto, as coisas começaram a correr bem e, neste momento, estamos muito satisfeitos com aquilo que estamos a fazer. Vencemos a meia-final contra o Al-Nassr - uma equipa que ainda não tinha perdido qualquer jogo - e estamos na final da Taça Saudita. Estou muito feliz. O trabalho está a sobressair. É um projeto de raiz. Ver a evolução das atletas tem um sabor especial. Fico muito feliz em ver a evolução das jogadoras sauditas e do próprio clube. Agora, toda a gente respeita o Al-Qadisiyah.»

«Os jogos passam todos na televisão»

Com o passar dos anos, mais clubes mostraram a intenção de criar equipas femininas. O Al-Qadisiyah é caso disso, num país em que esta realidade, até há pouco tempo, era efetivamente desconhecida. Afinal, esta é a terceira temporada em que existe Campeonato Nacional feminino na Arábia Saudita.

Mas não são apenas os clubes a mostrarem essa vontade. O próprio país tem dado passos nesse sentido, segundo o técnico português.

Al-Qadisiyah
2024/2025
16J
8V
5E
3D
49-18G

«O futebol na Arábia Saudita tem vindo a evoluir muito satisfatoriamente. Todos os jogos passam na televisão, quer da Liga, quer da Taça, e o adepto pode ouvir a narração em árabe ou em inglês. Já há um grande número de equipas femininas na Arábia Saudita», referiu ao nosso portal.

No entanto, o futebol não se faz só da televisão. No masculino, já vemos os estádios cheios na Arábia Saudita. Mas como é nos jogos das equipas femininas? Existe essa recetividade? Existe e em crescendum.

«Nos nossos jogos, temos entre 150 a 200 adeptos a torcer por nós no mesmo setor, sempre a cantar e a puxar pela equipa. O próprio clube quer que esses fãs estejam sempre presentes, quer em casa, quer fora. Contra o Al-Nassr, fora de casa, tivemos 500 adeptos. É muito bom, é totalmente diferente, e o apoio nesse jogo foi fantástico. Festa total com todos vestidos a rigor.»

«Todos os dias recebo mensagens a oferecerem-me jogadoras»

Ainda com muito por explorar, a Arábia Saudita tem sido cada vez mais falada pela quantidade de atletas, seja no masculino ou no feminino, que optam por seguir a carreira neste pequeno novo mundo do Médio Oriente. Mas que explicações há para este fenómeno?

Luís Andrade confidencia que, pelo menos em Al-Khobar, nada falta.

«O nível das infraestruturas é excelente. Só jogamos em campos top, em estádios. Na primeira divisão, não se vê um campo artificial. É só relvado natural. É uma coisa incrível. Aqui também se vê a qualidade que eles querem passar e a mensagem que se quer passar para o mundo. Fazem tudo para passar na televisão e querem passar com boas imagens. O estado do relvado tem de ser uma coisa satisfatória para atrair outros mercados.

@Al-Qadisiyah

No treino, eu tenho um campo para mim. Às vezes, divido com a equipa de sub-18 masculino, mas só nós é que treinamos aí. Depois, temos umas infraestruturas muito boas. A academia tem três pisos: o primeiro de relax, com snooker e sofás para as jogadoras poderem descansar e estar no convívio. Depois, o segundo piso tem os nossos escritórios e o gabinete do profissional feminino. O restante é o nosso centro de treinos. É fantástico. Estou satisfeitíssimo.»

E a decisão de ir para a Arábia Saudita foi difícil de tomar? O técnico garante que não e assume que para as próprias jogadoras também não aparenta ser.

«O mercado árabe abre muitas portas. Posso dizer que todos os dias recebo mensagens de empresários a oferecer-me jogadoras. Por vezes, não temos de ir atrás delas. As estrangeiras recebem bem. Eu penso que será fácil. Agora, não posso falar por elas. Posso dizer que há atletas jovens que vêm para aqui. A [Nesrine] Bahlouli, que era para ir para o Benfica... Porque é que veio para o Al-Nassr? Não foi para o Benfica. Deixou a Europa e a Liga dos Campeões para vir para o Al-Nassr. E não é primeira opção devido ao limite de estrangeiras. Temos seis estrangeiras, mas só podem jogar cinco.»

«As condições são fantásticas. Vivemos num compound muito bom. Temos tudo dentro do nosso compound, até temos uma praia privada. Não nos falta nada. Temos carro, temos casa. Bónus? Pagam a tempo e horas e ordenado igualmente. O respeito é enormíssimo», findou.

«Jogar contra o Benfica? Acho que não ganho»

Com este boom no mercado, há um maior interesse e, certamente, maior competitividade. Luís Andrade garante que, apesar das limitações nas inscrições de jogadoras estrangeiras, há espaço para uma evolução constante e que já é notória essa mudança.

«A jogadora saudita evolui mais porque há menos estrangeiras – é um pró -, mas depois existe o contra porque há menos estrangeiras para ajudar a evolução da jogadora saudita. A jogadora saudita aprende muito com a jogadora estrangeira», raciocinou, antes de levantar uma nova questão e uma comparação... com a Liga BPI.

«Eu jogo com cinco [estrangeiras], mas e se pudesse jogar com sete? A qualidade é outra. O futebol é mais rápido. A reação mais rápida, há mais força, mais velocidade. Porém, as sauditas evoluem mais porque jogam mais tempo. Como querem fazer o Campeonato do Mundo de futebol feminino na Arábia Saudita em 2035, a FIFA também quer ver a evolução saudita e isso é bom.

qComo querem fazer o Campeonato do Mundo de futebol feminino na Arábia Saudita em 2035, a FIFA também quer ver a evolução
Luís Andrade

No entanto se, por exemplo, tivéssemos de competir contra o Benfica, acho que não ganhava. Se eu jogar com as estrangeiras todas, se calhar já há um jogo muito mais equilibrado. É a nossa realidade, é a realidade do futebol árabe.»

A competitividade continua a aumentar na Arábia Saudita e, para o treinador português, o único técnico principal na Liga- Sandro Mendes integra a equipa técnica do Al-Nassr, que se sagrou campeão neste fim de semana-, ver todo o projeto do Al-Qadisiyah evoluir, a par das jogadoras locais a quem teve ensinar o básico dos básicos do futebol, é um orgulho.

«Vê-se que há evolução da jogadora saudita porque as jogadoras estrangeiras ajudam muito. A velocidade, a maneira como elas colocam o pé na bola, o passe mais tenso... Elas vão aprendendo e vão querendo imitar. Tenho tido sorte. As jogadoras estrangeiras vêm com a vontade de ajudar, independentemente se ganham bem ou se não ganham bem. Vêm com o desejo de ajudar a jogadora saudita a evoluir e isso é bom. Ganhamos todos. A amizade que elas têm umas pelas outras é fantástica.»

«Estou muito satisfeito por estar aqui. Essa sensação de ver o nosso trabalho e a evolução da jogadora saudita. É muito mais fácil e vê-las serem convocadas para a seleção é uma coisa ainda mais bonita de ser ver. É das melhores coisas que um treinador pode ter: trabalhar uma jogadora e, além de jogar na sua equipa, vê-la ser chamada para a seleção. São coisas que não têm preço.»