No departamento de Agronomia da Universidade do Algarve existe uma estufa cheia de pitaias ou fruta dragão, como também é conhecida a fruta subtropical em Portugal. Conhece-lhe o sabor quem a pode comprar - uma minoria - pois cada quilo custa entre 14 e 18 euros. A pitaia faz o seu caminho na estufa do professor Amílcar Duarte que, com ajuda de duas estudantes, explora as potencialidades da cultura da América Central em solos algarvios.

Pesam e medem todos os pés da planta que é da espécie dos cactos, registando as quantidades de água necessária para a fruta vingar em clima algarvio. Sabe-se que morre com a geada, dá-se bem em temperaturas que não desçam dos 16 graus e não excedam os 26 graus centígrados, requer pouca mão-de-obra e dá frutos entre a primavera e o verão.

Numa boa colheita retiram-se 40 toneladas por hectare. Se ao produtor o quilo é pago a cinco ou sete euros, façam-se as contas para perceber que o investimento é tentador. Diamantino Trindade, de 52 anos, experimentou e pretende expandir o hectare de pitaia nos terrenos da quinta que aluga, em Cacela Velha. Cultiva abacates e frutos vermelhos, mas se a plantação de pitaia, que ainda é jovem, se revelar mais rentável, planeia variar as colheitas.

“Estar a plantar tudo de abacates, que é mais rentável em termos económicos, é um grande risco e então há que diversificar”, explica o produtor.

Agronomia da Universidade do Algarve estuda necessidades hídricas da pitaia ou fruta dragão
Agronomia da Universidade do Algarve estuda necessidades hídricas da pitaia ou fruta dragão SIC Notícias

Nos arredores de Faro uma pequena plantação de pitaia já deu frutos
Nos arredores de Faro uma pequena plantação de pitaia já deu frutos SIC Notícias

Se a investigação de Amílcar Duarte provar que se faz mais dinheiro gastando menos água, a pitaia é capaz de criar raízes. O professor de Agronomia ainda não tem números finais, mas garante que a pitaia poupa um terço da água necessária nas culturas do abacate e da laranja. Mais poupada, é certo, mas ainda assim uma cultura permanente de regadio.

A seca algarvia, ligeiramente atenuada pela precipitação dos últimos meses, tende a ser mais recorrente. A precipitação em Portugal e Espanha diminuiu cerca de 15% nas duas últimas décadas, prevendo-se que diminua entre 10 a 25% até ao final do século, segundo os Planos de Gestão das Regiões Hidrográficas (PGRH 2022-2027).

O conflito de interesses, entre o consumo humano e turístico, de um lado, e o agrícola, do outro, levou a racionar a água destinada ao regadio e a limitar as explorações de abacate no Algarve. É natural que a agroindústria se debruce sobre outras latitudes para saciar a procura mundial de produtos exóticos, de colheitas fora da época e assim garantir que haja Tudo, Todo o Ano, em Todo o Lado…

Regadio em zona protegida

Na escala de pobreza de solos, os da charneca de Alcácer do Sal estão no topo: pouca capacidade de retenção de água, pobres em matéria orgânica, pouco férteis e ácidos. Mesmo assim, sobre as areias da charneca crescem tapetes de relva, mirtilos, abóboras, citrinos, couves e abacates. Terra de pinheiro, sobreiro e eucalipto, a charneca é Zona Especial de Conservação Comporta-Galé, inscrita na rede Natura 2000.

No papel existe um plano de gestão para conservação dos valores naturais. Na prática, os pivôs de rega e as filas paralelas de hortícolas e frutícolas em hidroponia já ganharam milhares de hectares àquela zona protegida. Professor catedrático do Instituto Superior Técnico, Manuel Duarte Pinheiro, calculou em mais de três mil os hectares agrícolas, três mil campos de futebol que recorrem a 130 furos de captação de água subterrânea. Além da dimensão dos consumos de água, o engenheiro especializado em ambiente e sustentabilidade ficou impressionado com a escala dos projetos.

“Diria que são brutais e que deixam de ser capazes de ser integrados adequadamente no território”

A Herdade Turística de Montalvo está cada vez mais rodeada de culturas de regadio
A Herdade Turística de Montalvo está cada vez mais rodeada de culturas de regadio SIC Notícias

Projeto de 700 hectares de abacate previsto para a bacia do Sado, em Alcácer do Sal
Projeto de 700 hectares de abacate previsto para a bacia do Sado, em Alcácer do Sal SIC Notícias

Na corrida ao areal da margem esquerda do Sado, há mais um projeto à espera de parecer da Comissão de Avaliação da CCDR Alentejo. Trata-se da maior exploração de abacates em Portugal, 700 hectares com recurso a 34 furos de captação de água.

Um projeto que foi contestado publicamente por mais de 300 pessoas, associações ambientais e de agricultores e até pelo Turismo do Alentejo, na fase de consulta pública. “Ou fazemos as leis, leis essas que estão ligadas a diretivas da União Europeia, e tomamo-las a sério, ou então partimos do princípio de que as áreas da proteção da natureza podem ser completamente artificializadas, adulteradas e desatamos a aprovar projetos”, alega José Manuel Santos, Presidente do Turismo de Portugal.

Já Manuel Duarte Pinheiro foi chamado a fazer um parecer sobre o impacto dos 700 campos de futebol daquele fruto subtropical na região e na vizinhança da Herdade Turística de Montalvo. O especialista em ambiente e sustentabilidade, entende que a exploração atual dos recursos hídricos subterrâneos naquela zona já atingiu o seu limite. O caso dos abacates do grupo Aquaterra chegou à Comissão de Ambiente da Assembleia da República, a 19 de julho de 2022. Na sessão, o autarca de Alcácer do Sal e o então Diretor Regional da Agricultura e Pescas do Alentejo (DRAP) defenderam os projetos agrícolas.

“Parece que isto é uma cambada de bandidos que andam aqui, estes agricultores são uns assassinos dos aquíferos. Isto não corresponde à verdade. Esta agricultura precisa de água”, disse, um pouco irritado, o autarca socialista, denunciando os habitantes da herdade de Montalvo, que revelando muita preocupação com os abacates, tencionam duplicar o número de camas na espécie de condomínio privado que é Montalvo.

Célia Metrass, uma das administradoras do condomínio de mil hectares, defende que os moradores cuidam da vegetação existente, ao contrário dos projetos agrícolas que, na sua opinião, “arrasaram” a vegetação na envolvente de Montalvo. A preocupação de Célia e dos outros moradores não se resume à eventual violação da legislação comunitária de proteção de habitats, mas também ao uso de fertilizantes e pesticidas que mais facilmente se infiltram em terrenos arenosos, correndo o risco de contaminar as águas do aquífero de Sado e Mira, onde todos vão beber: habitantes do concelho, setor turístico, campos de golfe e a agricultura.

A empresa Aquaterra garante que respeita os requisitos da rede natura 2000 e da ZEC Comporta-Galé, salvaguardando a continuidade dos corredores ecológicos e a integridade de habitats em 72% dos seis mil hectares que o grupo detém na região. O grupo, pertencente a uma empresa sediada no Luxemburgo, promete erguer habitação em Alcácer do Sal para os trabalhadores da futura exploração e a construção de uma central de distribuição com 200 postos de trabalho. Tudo depende do parecer favorável da comissão de avaliação da CCDR Alentejo, que deverá ser conhecido este verão.

Infrações e infratores

A 29 de outubro de 2014, o vigilante da natureza Paulo Sousa, entrou na herdade do Monte Novo do Sul, na charneca de Alcácer do Sal, e, para sua surpresa, detectou uma captação de água; uma aérea considerável da propriedade já gradada, com vegetação destruída e o solo superficial mobilizado.

A empresa Cropinvest já tinha manifestado junto das autoridades (APA e ICNF) a vontade de fazer agricultura biológica em 560 dos 1400 hectares da herdade, numa área que tinha ardido em 2010. Mas o que não se estava à espera é que tivesse avançado para mobilização dos solos antes do parecer favorável da CCDR Alentejo. Meses mais tarde, a empresa agroindustrial da família francesa Larrere pagou uma coima de quatro mil euros. Já depois disso, a BVLH, do mesmo grupo, fixou-se na charneca de Alcácer e nesta primavera está a cultivar abóboras para a Dinamarca.

Philipe Larrere, com quem a Grande Reportagem combinou telefonicamente uma reportagem na herdade, acabaria por desmarcar o encontro com o pretexto de que “há outros produtores que também estão no terreno e podem falar”. Bem tentámos, mas nenhum dos agroindustriais aceitou abrir as portas das herdades e mostrar o que cultivam e como o fazem.

Em quatro anos, entre 2019 e 2023, o ICNF levantou cinco autos de contraordenação relacionados com projetos agrícolas na ZEC Comporta-Galé. As infrações contemplavam solos remexidos sem autorização, vegetação e habitats destruídos, infraestruturas construídas sem parecer prévio e vias abertas e alargadas sem permissão. As 15 infrações foram enviadas para a CCDR Alentejo, entidade competente para decidir e aplicar sanções, se fosse o caso, mas esta instituição pública nunca esclareceu a Grande Reportagem sobre o desfecho dos autos.

O exemplo espanhol

É pegar no carro, fazer uns 80 quilómetros para lá da fronteira de Vila Real de Santo António e entrar nas estradas secundárias de Huelva. As que não levam às praias de Isla Cristina ou Canela, mas que conduzem à Andaluzia agrícola, onde a corrida ao ouro vermelho (morango, amora, mirtilo e arando) atapetou de estufas os terrenos de regadio, que eram de sequeiro, sorvendo os recursos hídricos da maior zona protegida de Espanha, a maior zona húmida da Península Ibérica, o Parque Nacional de Doñana.

Foi declarado Património da Humanidade pela Unesco, em 1994, mas no ano passado perdeu os requisitos para constar na Lista Verde da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês). Na orla do parque são visíveis as causas da queda há muito anunciada pelos cientistas da Estação Biológica de Doñana que registaram, nas últimas décadas, quebras na fauna e flora. O cultivo extensivo de frutos vermelhos e as centenas de poços ilegais que irrigam as estufas esgotaram o aquífero do parque.

Proliferação de poços ilegais para regar os frutos vermelhos “secou” Doñana
Proliferação de poços ilegais para regar os frutos vermelhos “secou” Doñana SIC Notícias

Secas e explorações ilegais estão a destruir o maior parque protegido de Espanha
Secas e explorações ilegais estão a destruir o maior parque protegido de Espanha SIC Notícias

O Governo do PSOE e o da Junta da Andaluzia, do PP, tentam agora remediar os erros do passado. Teresa Ribera, a ministra da Transição, e Juanma Moreno, o presidente do Governo autonómico, acertaram reverter os usos de alguns terrenos, pagando a proprietários para regressar a sequeiro ou à floresta. O Governo andaluz aplicou 72 milhões de euros para reconversão natural de sete mil hectares de terrenos.

Na Estação Biológica de Doñana, há muito que os cientistas avisavam que a manterem-se as explorações legais e a crescerem as ilegais, a morte do parque seria inevitável. Eloy Ravilla, diretor da Estação, diz que “há zonas em que o aquífero sofreu rebaixamentos de 30 a 40 metros de profundidade, quando nas zonas mais baixas do parque a água deveria surgir à superficie, porque é uma zona húmida”, a chamada “marisma”. A caça aos poços ilegais levou a Confederação Hidrográfica do Guadalquivir a fechar coercivamente 270 captações. Felipe Fuenteslaz, membro da World Wild Fund, diz que eram muitos mais.

“Há nove mil hectares de regadio na orla de Doñana, dos quais dois mil não têm licença de exploração e havia aproximadamente 1000 poços ilegais. Encerraram muitos deles, mas a superfície explorada não tem diminuído”.

Doñana é porto de abrigo de muitas espécies que transitam entre hemisférios. Centenas de aves procuram a “marisma” temperada e húmida para nidificar. O censos do parque revela o número de exemplares das espécies de longas distâncias tem vindo diminuir assim como acontece com duas espécies protegidas, o lince e a águia real. No sobreiro é evidente o efeito das secas prolongadas e da falta de água no aquífero. Os ramos mais altos começam por secar, ficam depois ocos até que a árvore acaba por morrer em pé.

A Grande Reportagem Tudo, Todo o Ano, em Todo o Lado é um trabalho da jornalista Amélia Moura Ramos, com imagem de Fernando Silva e Hugo Dinis Neves, edição de Ricardo Tenreiro e Marisabel Neto, grafismo de Nuno Gonçalves e produção editorial de Diana Matias.