De acordo com Marta Vasconcelos, coordenadora do projeto e investigadora do Centro de Biotecnologia e Química Fina da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, "atualmente, enfrentamos uma situação marcada por uma grande uniformidade na alimentação e na agricultura", sendo, por isso, essencial existirem ferramentas que fomentem uma diversificação na cadeia de produção. Estas ferramentas foram desenvolvidas pelo RADIANT, projeto do qual fomos saber mais através desta entrevista com Marta Vasconcelos.

Em que consiste o projeto RADIANT?

O projeto RADIANT é um projeto europeu, que envolveu 29 parceiros de 12 países. Teve a duração e quatro anos e termina no final do mês de agosto de 2025. O projeto teve como objetivos principais quantificar e demonstrar o valor das culturas subutilizadas e geneticamente diversas para torná-las mais competitivas. Quando falamos em culturas subutilizadas, referimo-nos a uma espécie, variedade ou cultivar negligenciada, mas valiosa, que tem uso limitado num determinado contexto geográfico, social e económico, mas que é muito promissora para rações, alimentos e outros fins não alimentares. Entre as variedades que trabalhámos no RADIANT destaco, por exemplo, o “amendoim bambara”, o milho-paínço, a lentilha, variedades locais de feijão, cevada, milho, trigo e tomate, a fava, o tremoço, folhosas alternativas para salada, ou até mesmo árvores de fruto tradicionais. O projeto procurou, ao mesmo tempo, apoiar estratégias da União Europeia para cadeias agroalimentares sustentáveis e contribuir para promover sinergias entre a produção agrícola, a biodiversidade e a prestação de serviços de ecossistema de relevância local, regional e global. Globalmente, a ideia principal é promover a agrobiodiversidade.

Como o projeto foi desenvolvido, tanto a nível europeu, como em Portugal?

O projeto foi coordenado pela Universidade Católica Portuguesa, no Porto, no Centro de Biotecnologia e Química Fina da Escola Superior de Biotecnologia. Temos um consórcio que combina parceiros académicos, institutos de investigação, agricultores, NGOs, e empresas, e no centro estavam 20 pilotos a quem chamamos quintas “Aurora”. Duas delas localizam-se em Portugal: a Herdade do Freixo do Meio, no Alentejo, e o Biofontinhas, na ilha Terceira, e nestes pilotos temos bons exemplos demonstradores de boas práticas e de modelos em que se consegue promover variedades subutilizadas, agrobiodiversidade e práticas sustentáveis em modelo de negócio bem-sucedidos. Juntamente com estes pilotos e com mais de 40 agricultores participativos espalhados por toda a Europa, conseguimos com eles reunir dados e desenvolver ferramentas que nos permitem extrapolar os modelos para outras geografias e tipos de exploração agrícola.

O projeto foi estruturado em nove grupos de trabalho, cada um focado numa área específica: envolvimento transdisciplinar e cocriação de conhecimento; aperfeiçoando o desempenho através de melhoramento genético e agronomia inovadores; ampliação do reconhecimento do valor; desenvolvimento de métricas de sustentabilidade e resiliência das variedades subutilizadas e suas cadeia de valor; possibilitando transformações: avaliações socioculturais e incentivos políticos; liberando o valor: caminhos para a transformação; comunicação, divulgação e exploração; coordenação; ética.

Marta Vasconcelos, coordenadora do projeto RADIANT
Marta Vasconcelos, coordenadora do projeto RADIANT créditos: Divulgação

Qual é o balanço que faz do projeto?

O balanço foi extremamente positivo. O consórcio trabalhou muito bem em conjunto, de forma muito sinérgica e colaborativa, e houve um enorme interesse nacional e internacional pelas nossas iniciativas e resultados. Ao longo destes quase quatro anos de projeto, conseguimos publicar mais de 40 artigos científicos, cada um com dados e conclusões relevantes nas áreas da agronomia, genética, nutrição, alimentação, saúde, sustentabilidade, engenharia alimentar e política. Criámos a Caixa de Ferramentas RADIANT, que reúne as ferramentas e plataformas desenvolvidas ao longo do projeto, disponíveis em várias línguas no site oficial. Desenvolvemos protocolos que permitem a produção técnica e economicamente viável de variedades raras, definindo as condições ideais de crescimento em diferentes sistemas de produção. Realizámos mais de 30 ensaios de campo, onde testámos populações de espécies raras e identificámos aquelas com maior tolerância a stresses ambientais (como calor ou escassez de água) e fisiológicos (como resistência a doenças). Envolvemos 45 agricultores participativos que testaram, nas suas explorações, espécies e variedades raras, tradicionais ou subutilizadas. Organizámos 12 workshops de cocriação CREATOR e três eventos gourmet, onde apresentámos produtos desenvolvidos com estas espécies.

Desenvolvemos protocolos que permitem a produção técnica e economicamente viável de variedades raras

No total, foram criados, testados e validados 14 novos produtos para alimentação humana e animal, com base em espécies subutilizadas. Medimos o impacto ambiental de sistemas que integram estas variedades através de análises de ciclo de vida, desenvolvemos um novo logótipo para identificar estas plantas raras e especiais, e criámos um quadro de referência para quantificar os serviços de ecossistema que elas proporcionam — testado em oito explorações agrícolas. Lançámos também uma aplicação móvel que conecta agricultores, retalhistas e consumidores, promovendo cadeias de valor curtas. Mais recentemente, desenvolvemos uma ferramenta inovadora: o Gerador de Avenidas de Mercado (MAG), apoiado por Inteligência Artificial, para fomentar a inovação agroalimentar sustentável. Por fim, criámos diversos materiais de comunicação apelativos e informativos, que gostaríamos de ver divulgados por diferentes canais.

Quais foram as principais mudanças implementadas?

As mudanças e os impactos, estando o projeto agora a terminar, acredito que venham a ser mais evidentes no futuro próximo. Até agora trabalhámos as ferramentas, gerámos os dados, tratámos os dados, organizámos os eventos e os workshops, capacitámos agricultores, chefs, consumidores, e outros atores das diferentes cadeias de valor, a saber fazer opções mais sustentáveis e a promover as variedades subutilizadas. As mudanças que já vemos acontecer são várias, desde o campo até ao prato. Ao nível do consumo, vemos a adoção de dietas mais sustentáveis, a maior adesão ao nacional e ao local, a maior procura do que é tradicional e português, a um consumo mais consciente. Ao nível agrícola vemos mais diálogo e partilha, vemos um interesse crescente nesta área, e juntamente com os esforços de muito outros projetos e iniciativas, bem como incentivos governamentais ou até mesmo graças às motivações intrínsecas de cada um, começaremos a testemunhar uma transformação do setor agrícola no sentido de acarinhar mais as variedades subutilizadas. Há uma grande curiosidade e vontade no setor.

A diversidade é fundamental para o setor agrícola e para os consumidores
A diversidade é fundamental para o setor agrícola e para os consumidores créditos: Unsplash

E os principais desafios?

Os desafios são vários. Número um, há um envelhecimento no setor agrícola, e nos últimos 10 anos, houve uma fuga de trabalhadores para outros setores (uma redução de 23% na Europa). Temos de tornar o trabalho agrícola mais compensador e atrativo para os mais jovens. Temos outro problema, que é o conseguir extrapolar soluções locais para outras geografias ou contextos socioeconómicos, ou até mesmo culturais. A Europa é, (felizmente) muito rica e diversa, tanto nas preferências dos consumidores, como nos alimentos de base vegetal que podem ser produzidos nos diferentes países (e mesmo dentro do próprio país, nas suas diferentes regiões). Apesar de no RADIANT termos encetado esforços em vários países na Europa, as soluções que criámos carecem de ser testadas por públicos mais diversificados. Temos também de considerar que vivemos numa economia global, que está neste momento em grande transformação, sendo ainda muito imprevisível qual o futuro da Europa em termos da sua autonomia agrícola e soberania alimentar. Em Portugal, por exemplo, importamos 70% dos nossos alimentos.

Temos de tornar o trabalho agrícola mais compensador e atrativo para os mais jovens

Atualmente, enfrentamos uma situação marcada por uma grande uniformidade na alimentação e na agricultura, apesar da perceção de que existe uma ampla diversidade de produtos disponíveis. Embora os supermercados ofereçam uma variedade razoável de alimentos, sobretudo de origem vegetal, na realidade, a produção e o consumo global concentram-se nas mesmas variedades dos mesmos alimentos. Este cenário torna o sistema alimentar vulnerável. Se ocorrerem alterações climáticas significativas ou surgir uma nova praga ou doença, poderemos enfrentar perdas de produção graves a nível global. No entanto, existe um vasto património genético de variedades de plantas que ainda está por explorar e valorizar. O grande desafio vai ser conseguir efetivamente diversificar as explorações agrícolas e encontrar cadeias de valor para todos os produtos resultantes dessa diversificação, que tornem o negócio rentável e possível para o agricultor. Outro desafio será identificar variedades adaptadas a todas as geografias onde as gostaríamos de implementar, e perceber de que forma podemos produzir com diversificação, mas a preços competitivos. Veja-se o caso das leguminosas, cuja produção está claramente abaixo do que precisávamos e que são importadas de países terceiros a preços difíceis de combater com uma produção nacional de baixa escala, mas grande valor.

As leguminosas estão entre as culturas mais subvalorizadas
As leguminosas estão entre as culturas mais subvalorizadas créditos: Unsplash

Quais são os próximos passos a serem dados na área da agricultura para garantir um futuro melhor?

Os próximos passos serão fazer chegar os resultados e as ferramentas criadas pelo projeto a um público mais alargado, e demonstrar mais amplamente os benefícios que traz a diversificação não só no campo, mas também alimentar.

Enquanto consumidores, o que podemos fazer para tomar escolhas mais sustentáveis?

Diria que devemos dar primazia a três “ais”: sazonais, locais e vegetais. Devíamos dar primazia aos alimentos produzidos de forma mais sustentável, e claro, aumentar a demanda para as variedades subutilizadas. No RADIANT desenvolvemos um novo logótipo para estas variedades, que também gostaríamos de explorar no futuro.

“Uma das tendências da alimentação é a troca da vaca pelo feijão”. Que tipo de alimentos deveríamos consumir mais em detrimento de outros?

Não sou nutricionista, pelo que a minha opinião “vale o que vale”. Mas antes de mais, creio que deveríamos consumir as quantidades recomendadas. Infelizmente, o português consome demasiadas calorias no geral, cerca de 30% acima da recomendação da FAO de 2.500 kcal por pessoa. Um em cada dois portugueses não consome a quantidade de fruta e legumes recomendada pela Organização Mundial de Saúde, e mais de 90% da população consome açúcares simples acima do limite recomendado pela OMS. Além disso, consumimos três vezes mais carne, peixe e ovos do que o recomendado. Se consumíssemos menos (falo para aqueles que consomem quantidades excessivas, claro), o impacto na nossa saúde e na saúde do nosso planeta seria enorme. Deveríamos, também, consumir mais leguminosas. A nossa roda dos alimentos preconiza que consumamos cerca de 80g de leguminosas cozinhadas por dia (cerca de 25 g de leguminosa seca, uma “mão cheia” de feijão, grão, lentilha...). Atualmente, consumimos apenas cerca de 15g por dia.

Devíamos dar primazia aos alimentos produzidos de forma mais sustentável, e claro, aumentar a demanda para as variedades subutilizadas

Quais são as tendências e boas práticas que devem ser adotadas no setor?

Segundo um estudo recente da Portugal Foods, os consumidores procuram cada vez mais produtos que cuidam da saúde, mas também do planeta. A qualidade dos ingredientes e dos produtos é cada vez mais essencial, com destaque para a frescura, os benefícios nutricionais. Tem havido um foco cada vez maior na saúde intestinal, com crescimento de produtos ricos em fibras e probióticos. Os alimentos de base vegetal continuam a crescer, com a “naturalidade” (sendo um conceito, a meu ver, debatível) usada como argumento de venda. A consciência ambiental creio que irá influenciar cada vez mais as escolhas do consumidor. Mas os dados mostram também que os consumidores valorizam cada vez mais sabores tradicionais e querem redescobrir receitas antigas. Isto é ótimo para o RADIANT. A alimentação está também a ser cada vez mais vista como uma ferramenta para melhorar o humor e a saúde mental.

A União Europeia continua a apostar em projetos ligados à diversificação de culturas, à promoção da proteína verde, à economia circular, à redução da dependência de fertilizantes químicos, mas também vejo uma tendência para uma ligação cada vez maior entre a investigação e a indústria. Isto pode ser positivo. Mas a meu ver deverá haver um equilíbrio entre a investigação de cocriação com stakeholders (sejam eles indústria, setor agropecuário, NGOs, etc.), e a investigação mais fundamental que nos permitirá ir mais além no conhecimento do futuro. Vejo um enfoque proeminente na inteligência artificial, que está também a revolucionar o setor.