Para um agricultor – tanto de regadio como de sequeiro - a água é tudo.

Num artigo publicado em junho discorri sobre a EDIA. Hoje proponho-me a dissecar outro dos donos da água – e, portanto, disto tudo, no Alentejo – a EDP. Isto porque sistematicamente se desvia água em detrimento daquele que era o seu uso previsto aquando da feitura do empreendimento de Alqueva e se segue, depois, e ainda assim, para o acusar de gerar défices operacionais e de se ver comprometida a sua viabilidade económica.

Ora, vejamos.

Em 2007 o governo do engº. José Sócrates, liderado pelo saudoso ministro Manuel Pinho, aliás recentemente condenado por corrupção passiva, branqueamento de capitais e fraude fiscal no chamado “caso EDP” referente às “rendas excessivas da elétrica”, compeliu a EDIA – da qual era acionista a 100%, por via do Estado – a assinar um contrato de concessão da central hidroelétrica à EDP. Note-se que é esse o ano dos atos que levaram à posterior condenação do ministro Manuel Pinho – ano em que prolongou a concessão de dezenas de barragem à EDP, proporcionando-lhes um benefício indevido de cerca de €1.000M (mil milhões de euros).

Esta concessão trouxe: i) uma redução do volume concessionado para rega; ii) impactos na viabilidade económica do perímetro; iii) uma gestão subótima das cotas da albufeira; iv) um enfraquecimento das garantias interanuais; v) um grande desconto para o concessionário; vi) a permissão do desperdício de um recurso escasso.

Explico-me.

Era suposto a EDIA ser concessionária de 950hm3 de água (página 23 – “Segundo o Estudo de Impacto Ambiental, prevê-se que, em situação de plena utilização, serão necessários cerca de 900 a 950hm3 por ano para regar os 110.000ha”).

Foi um governo, hoje sabemos, criminoso, que lhe retirou quase 40% deste volume e o concessionou à EDP. Foi, em 2007 e por esses protagonistas, que os agricultores e os portugueses, particularmente os alentejanos, foram extorquidos de um investimento que era deles e que hoje tanta falta faz. Por essa via, tornaram a EDIA dependente de equilíbrios políticos precários para gerir a escassez ao invés de protagonista de uma gestão responsável e sustentável de um investimento bem dimensionado e estruturado na sua origem.

Urge rever este contrato porque houve uma redução do volume concessionado para rega dele derivado.

O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita e aquilo que deveria ter sido um procedimento concursal aberto, transparente, de mercado e competitivo metamorfoseou-se num açambarcamento privado de lucros financeiros provenientes de um investimento público e altamente comparticipado por Fundos Europeus decidido por ajuste direto. Leia-se, criou-se, mesmo, mais uma “renda excessiva”, que não deverá continuar a ser permitida.

Note-se que os considerandos deste contrato de concessão espraiam-se ao longo de quatro páginas (admito que poderá ser complicado explicar algo enviesado*) para, aduzindo um suposto direito conferido em 1973 sob “o aproveitamento hidroelétrico do rio Guadiana, nos escalões de Alqueva e Rocha da Galé”, prosseguir para a legitimação da concessão, em 2007, a uma empresa de capital privado – que, em 1973, era pública – que não pagou o investimento infraestrutural necessário para que se verificasse o dito “aproveitamento hidroelétrico” que, recordemo-nos, à altura da concessão, em 1973, nem sequer existia!

A contrapartida inicial foi de €150M (a preços correntes de 2024, representa €200M). A partir daí, pagam €12,67M anualmente. Os proveitos advindos das turbinas da produção hidroelétrica têm de compensar a renda anual, bem como o investimento inicial protagonizado pela EDP. Seria a única forma de ter tido este negócio a “andar para a frente”.

Ora, recentemente, a Iberdrola investiu €1.500M para ter um complexo de bombagem-turbinagem de 900MW, ou seja, enquanto a Iberdrola investiu €1,66M/MW instalado, a EDP, cujas turbinas sob gestão totalizam 511MW, teve um investimento inicial de €0,29M/MW instalado (€0,39M/MW a preços correntes). Isto é, sem contar com os ganhos de escala comparando os dois projetos, bem como os tecnológicos que advêm das quase duas décadas decorridas, a EDP conseguiu ter um custo inicial seis vezes menor.

Como agricultor, posso não perceber nada de energia ou do investimento requerido para construir barragens e turbinas, mas é o próprio Tribunal de Contas, em auditoria de 2016, que, taxativamente, assume: “trata-se de um contrato cujas ações prévias demonstram que o interesse público não foi devidamente salvaguardado”. *

Urge rever este contrato porque houve uma atribuição de um grande desconto ao concessionário, por um prazo demasiadamente alargado.

Originalmente, as turbinas hidroelétricas foram pensadas para escudar a EDIA face a variações de preço na eletricidade, uma das suas principais rubricas de custo. Quando se vende a turbina, a EDIA passou a ser compradora de energia, sem ter nenhuma para vender. A penalização é evidente ao observar o défice operacional da EDIA e, por outro lado, pelos vários perímetros hidroagrícolas espalhados pelo território que não sobreviveriam sem a sua própria turbina hidroelétrica.

Urge rever este contrato porque compromete a viabilidade económica do empreendimento.

Ademais, a própria gestão das cotas acaba por ser feita, também, de modo a afiançar a máxima produção elétrica, isto é, garantindo altas cotas na albufeira de Alqueva para que a queda bruta média (diferença face à cota de Pedrógão) seja maximizada e, com esta, a produção por metro cúbico turbinado. Tendo cotas mais altas em Alqueva, produzir-se-á mais energia por m3 turbinado. Destarte, é ponto assente que à EDP não interessará uma maior utilização de água para rega, mesmo que essa esteja integrada num plano sustentável de gestão hídrica.

Porém, aos portugueses, também não interessa, por via dos seus impostos, continuar a financiar um défice operacional e, aos agricultores, muito interessa a sustentabilidade prometida dos investimentos feitos, que se vê comprometida pelas atuais dotações conferidas pela EDIA.

Urge rever este contrato por levar a uma gestão subótima das cotas da albufeira, ou seja, da água.

A EDP mantém, ainda, condições de acesso privilegiado à água, nomeadamente no preço que paga pelo seu usufruto. A Taxa de Recursos Hídricos a que está sujeita, de acordo com as tabelas publicadas pela APA, representa cerca de 1/10 do preço que paga o agricultor pela mesma água, mas usada para rega.

Ora, isto refere-se apenas ao volume que a EDP não é obrigada a repor na albufeira de Alqueva, isto é, a bombar para cima de novo, pois, na verdade, garantindo que “em todos os outros casos toda a água que for turbinada terá de ser bombada para a albufeira de Alqueva”, a EDP pode usar o volume de água abaixo de determinada cota  – esse sim, devido à resiliência do sistema, que tem sempre garantido. Ou seja, o volume de água é substancialmente maior do que o de turbinagem livre, podendo ser multiplicado por um fator na ordem das dezenas, pelo simples mecanismo associado aos complexos de bombagem-turbinagem (que explico, aqui) e que, assim, levam a um preço ao metro cúbico que tende para €0/m3. **

Não vou, desde já, entrar no leilão a ser preparado há mais de dois anos referente à prestação de serviços auxiliares à rede, novamente, uma mudança disruptiva da nossa rede elétrica, que vai, novamente, beneficiar enormemente… a EDP***.

Urge rever este contrato por alteração anormal e significativa das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de celebrar o contrato, como, aliás, previsto na Cláusula 26.ª.

Valerá igualmente a pena embrenharmo-nos no dilema ético da permissão da turbinagem livre? Eu considero que sim visto que me é incompreensível como, num cenário de escassez hídrica e de parcimónia na gestão da água, se turbina diretamente – em linguagem corrente, se desperdiça – água tendo a capacidade de a rebombear para reaproveitamento e, ainda por mais, com caso económico para o fazer. Excetuando qualquer limitação de ordem técnica e o cabal cumprimento dos caudais ecológicos é imoral fazê-lo. Como se garante a segurança interanual se deixamos desperdiçar o excedente dos anos bons?

Urge rever este contrato por levar a um enfraquecimento das garantias interanuais do sistema e por legitimar o desperdício de água.

Analisando os dados, começa a afigurar-se como gestão dolosa a falta de revisão do contrato de exploração das centrais hidroelétricas de Alqueva e Pedrógão à EDP.

Urge rever este contrato começando por uma averiguação da sua, possível, nulidade por consubstanciação de, mais, um ato de corrupção por parte de um governo corrupto.

Urge rever este contrato, se válido, porque tem de haver um ajustamento que reflita o facto de existir a possibilidade da reversibilidade e a remuneração, antes inexistente, dos serviços auxiliares de rede.

Urge rever este contrato, porque uma mera revisão desta renda colocaria a EDIA sem qualquer défice operacional, mantendo ainda assim o negócio a atratividade para qualquer futura concessionária.

Urge rever este contrato, porque os mecanismos de revisão do contrato estão lá previstos.

É obrigação do Estado e de uma boa gestão.

Ontem era tarde!

* A própria EDIA num parecer interno de 1995 “conclui que não existem direitos adquiridos por parte da EDP com base no protocolo assinado”.

** Atualmente, considerando o excedente de energia solar durante o período diurno, em que a EDP aproveita para bombar água para Alqueva a preços perto, ou abaixo, de €0/MWh, turbina depois esse mesmo volume para produção de energia para as horas de pico de preço (início ou final do dia) conseguindo lucrar com essa arbitragem e, principalmente, multiplicando retornos de um recurso finito que, pelo próprio engenho do negócio, se torna infinito. É um recurso, realmente renovável e que pode financiar uma significativa parte dos investimentos necessários à transição energética justa e sustentável.

*** Os serviços auxiliares à rede vão ser prestados, também, absorvendo o excedente da produção solar ou eólica quando não houver consumo para a absorver, armazenando-o para utilização em altura subsequente, de maior consumo, sendo o caso mais fácil de perceber o das baterias de lítio convencionais. A EDP – bem como todos os concessionários de complexos de bombagem-turbinagem –, conseguem acautelar o mesmo, bombando água para o reservatório de cota superior, acomodando os excedentes, e turbinando-o quando houver necessidades de consumo. As nossas barragens são as maiores e mais baratas baterias de que dispomos e contamos vir a dispor ou construir nas próximas décadas.

Mestre em Engenharia Agronómica e em Finanças e Mercados Financeiros

As Crónicas Rurais incidem sobre temas relacionados com o mundo rural, com uma periodicidade semanal. São asseguradas por um grupo de autores relacionados com o setor, que incluem Afonso Bulhão Martins, Cristina Nobre Soares, Filipe Corrêa Figueira, João Madeira, Marisa Costa, Pedro Miguel Santos e Susana Brígido.