
A propósito da proposta apresentada pela Comissão Europeia para o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia (UE) para o período 2028-2034, regresso ao tema da Política Agrícola Comum (PAC), para uma análise desta vez não focada no sector agrícola, mas antes no papel desta política na coesão social dos países da UE.
Para entender a relevância da PAC no processo de construção europeia, há que regressar ao contexto da época da constituição da então Comunidade Económica Europeia (CEE), em que a Europa, além da instabilidade política e económica, decorrente da ressaca da II Guerra Mundial, se debatia com um abastecimento alimentar deficitário, marcado pela insegurança e potenciado por um quadro de pobreza das zonas rurais.
A PAC original foi um reflexo disso mesmo, procurando conjugar uma intervenção profunda no setor agrícola e nas comunidades rurais sem, contudo, esquecer a importância da alimentação para a pacificação da sociedade como um todo. Assim, a par do aumento da produtividade da agricultura, do progresso técnico, do desenvolvimento racional da produção agrícola, da necessidade assegurar um nível de vida equitativo à população agrícola, a PAC foca-se igualmente na estabilização dos mercados, na garantia da segurança dos abastecimentos e também naquilo que me parece merecer um destaque particular: em assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores.
Esta fórmula, inaugurada há mais de 60 anos, converteu a Europa de deficitária em excedentária e foi, inevitavelmente, sofrendo reformas e evoluções, chegando até nós já bastante diversa do figurino original: menos focada na produção, mais consciente do papel da atividade agrícola numa série de outros domínios que transcendem a produção primária — com destaque para o ambiental e social —, mas ainda a garantir não só a segurança dos abastecimentos a preços razoáveis para os consumidores como um quadro de segurança alimentar sem paralelo.
Dito isto, não será ilegítimo considerar que a PAC, ao contrário do papel redutor que lhe é atribuído por muitos fazedores de opinião da nossa imprensa, como se de um mero instrumento de privilégio e promoção de um setor de atividade económica se tratasse, tem sido uma contribuidora ativa para a coesão — e para a paz — social na UE.
É precisamente pela necessidade de continuar a assegurar esta função que a referida proposta da Comissão para o QFP 2028-2024, que, a par de uma redução do orçamento total para a agricultura, levanta ainda o espetro da renacionalização de partes da PAC — o que a desfiguraria, enquanto política comum —, suscita reservas, dentro e fora do setor.
Dentro do setor, desde logo porque estamos perante um instrumento que, ao longo das últimas seis décadas, se tornou estrutural, ou seja, foi incorporado por todos os intervenientes — da produção ao retalho — como fazendo parte do mundo em que vivemos. Dito doutra forma: a grande maioria dos produtores só consegue colocar produtos no mercado a "preços razoáveis" para os consumidores, porque conta com o apoio da PAC.
De fora do setor porque, por um lado, a PAC tem sido, particularmente desde a reforma de 1992, uma componente significativa, não só da compatibilização da atividade agrícola, com a conservação dos recursos naturais, como também da promoção de muitos valores de conservação valorizados pela nossa sociedade. Por outro lado, além da componente ambiental e climática da atual PAC, temos a já referida relevância social, bem resumida na frase seguinte, que, embora utilizada como elemento satírico, sintetiza de forma incisiva a importância da alimentação para a paz social: "(...) civilization is twenty-four hours and two meals away from barbarism"[1]. A prudência — e as experiências recentes — aconselham a não testarmos este limite.
Por fim, importa visitar um dos mitos mais profusamente difundidos, em artigos de opinião e não só: o do enorme custo orçamental da PAC. Este mito nasce da importância da despesa associada à PAC nos primeiros orçamentos, em que, sendo a única política efetivamente comum, ocupava, como não poderia deixar de ser, a fatia mais significativa dos orçamentos[2]. Acontece que a UE evoluiu e esse quadro orçamental já não existe: a PAC representa atualmente (2023) 24,6% da despesa comunitária.
A pergunta seguinte é: e quanto é o orçamento comunitário? Para o período 2021-2027 foi de 2,018 triliões de euros, um valor difícil de materializar. Mais fácil de conceber é saber que este valor representará, em 2025, um peso de 1,08% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) dos países da UE. Contas feitas, com 0,27% do RNB da UE garante-se o financiamento da PAC, ou seja 0,27% do RNB por 62 anos de paz. Não parece caro.
Engenheiro Agrónomo e Agricultor
As Crónicas Rurais incidem sobre temas relacionados com o mundo rural, com uma periodicidade semanal. São asseguradas por um grupo de autores relacionados com o setor, que incluem Afonso Bulhão Martins, Cristina Nobre Soares, Filipe Corrêa Figueira, João Madeira, Marisa Costa, Pedro Miguel Santos e Susana Brígido.
[1] Frase atribuída a Terry Pratchett & Neil Gaiman em Good Omens: The Nice and Accurate Prophecies of Agnes Nutter, Witch; não foi possível confirmá-la na obra original.
[2] A título de exemplo, refira-se que, em 1980, a PAC absorveu 73,2% do orçamento comunitário desse mesmo ano.