Mais de 18% da população portuguesa entre os 18 e os 74 anos sofreu algum tipo de violência antes dos 15 anos — uma realidade chocante que afeta cerca de 1,4 milhões de pessoas no país. O dado, revelado no novo relatório do Instituto Nacional de Estatística (INE), expõe um flagelo silencioso e persistente da sociedade portuguesa, com marcas profundas na saúde física e mental das vítimas, e consequências sociais graves.

Segundo o estudo “Violência na Infância — o que dizem os números (2023)”, 17,6% dos inquiridos foram vítimas de violência emocional ou física praticada pelos próprios progenitores. Separando por tipo, 14,5% sofreram agressões físicas e 10,1% foram alvo de humilhações, ameaças ou insultos. Já a violência sexual atinge 2,3% da população, com agressões na maioria cometidas por alguém próximo da criança — contribuindo para a subnotificação deste crime.

As mulheres são três vezes mais vítimas de abuso sexual na infância do que os homens. Entre as inquiridas, 3,5% relataram ter sido abusadas sexualmente antes dos 15 anos, contra 1,1% dos homens. Por outro lado, os rapazes referem ter sofrido mais violência física. Estas discrepâncias refletem estereótipos de género que influenciam os padrões de maus-tratos.

O relatório evidencia ainda diferenças geracionais significativas: os portugueses mais velhos (55–74 anos) registam uma prevalência de 21,9% de violência na infância, contra 12,4% nos jovens adultos (18–34 anos). Este dado pode indicar uma descida progressiva dos maus-tratos ao longo das décadas ou maior reticências dos mais novos em partilhar experiências recentes e traumáticas.

A Madeira é a região com a taxa mais alta de violência infantil reportada (23,9%), enquanto o Alentejo e a Área Metropolitana de Lisboa têm as mais baixas. Ainda assim, mesmo nas zonas com menor prevalência, o fenómeno continua preocupante: em Lisboa, 1 em cada 6 pessoas admite ter sido vítima de violência na infância.

Os contextos de maior pobreza e exclusão social também revelam taxas superiores de maus-tratos: entre quem apenas concluiu o 1.º ciclo do ensino básico, 25,9% sofreram abusos físicos ou psicológicos na infância, enquanto entre licenciados essa percentagem desce para 15,4%. Entre pensionistas e pessoas dependentes de apoios sociais, a taxa de vitimação chega aos 24%.

O impacto da violência na infância estende-se à saúde: 27% das pessoas com deficiência ou limitações severas sofreram abusos dos progenitores em criança. Muitos especialistas sublinham que o trauma infantil deixa marcas invisíveis, como depressão, ansiedade, baixa autoestima e maior risco de suicídio.

As consequências não são apenas individuais. Crianças vítimas de violência tendem a reproduzir comportamentos abusivos na idade adulta ou a entrar em relações violentas, perpetuando ciclos intergeracionais de trauma e exclusão.

Portugal tem avançado na proteção dos menores, com a rede das CPCJ (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens) e a Estratégia Nacional para os Direitos da Criança, mas persistem falhas graves de articulação entre serviços, escassez de técnicos e atrasos nas intervenções. Casos mediáticos como o de Valentina, assassinada pelo pai, expuseram lacunas dramáticas na resposta do Estado.

Organizações como a CNPDPCJ e peritos em saúde infantil alertam para a urgência de reforçar políticas públicas, nomeadamente apoio psicológico continuado, formação parental, educação emocional nas escolas e justiça adaptada às crianças vítimas. O modelo Barnahus, em fase-piloto em Portugal, propõe centros integrados de apoio à criança maltratada, com acolhimento e resposta num só local, evitando revitimização.

Comparando com a Europa, Portugal regista taxas semelhantes à média em alguns indicadores e inferiores noutros — como o homicídio infantil. No entanto, o abuso sexual continua a ser subdenunciado, e entidades europeias alertam que até 20% das crianças no continente sofrem algum tipo de violência sexual.

Para muitos especialistas, a chave está na prevenção. Educação para a não violência, formação para pais, redes comunitárias de apoio e investimento contínuo nos serviços sociais são estratégias vitais para quebrar o ciclo. Cada euro investido na infância gera retorno económico e social significativo. Como refere o relatório: “Só conhecendo o presente e o passado podemos prevenir e projetar um futuro menos sombrio e mais luminoso.”