
A estrear-se no Teatro Variedades, por o edifício-sede, no Rossio, ainda se encontrar em obras, o espetáculo tem versão cénica e direção de Cristina Carvalhal, e inspira-se no texto original de Augusto Abelaira 'O nariz de Cleópatra', escrito em 1962, "no início da Guerra Colonial".
Um texto de que Cristina Carvalhal "gosta muito", como a encenadora disse à imprensa no final de um ensaio, sublinhando que a ação se passa quando a nível mundial não se verificava "toda a conjuntura" favorável à extrema-direita atual, e a ditadura portuguesa era uma das poucas exceções às democracias da Europa Ocidental saída da II Guerra Mundial.
"E é isso que estamos a viver agora, a ascensão do fascismo por todo o mundo", acrescentou, sublinhando que o espetáculo fala "sobre a falta de liberdade, a desigualdade, privilégios, uma sociedade cada vez mais desigual".
"Portanto, torna-se outra vez isto, e [a peça] é sobre isto", porque "é isso que estamos a viver neste momento, a um extremo absurdo", frisou.
Os pontos-chave da obra são "o absurdo da atual organização societária, o privilégio de classe social, de género, de etnia e de branquitude", sustentou.
"Já não podemos falar só de uma coisa, porque tudo está relacionado", defendeu, alegando que "mesmo que se tenha muita consciência sobre isso, muitas vezes não deixamos de ser racistas", observou a encenadora.
Não "temos consciência do que é o privilégio em que vivemos e isso está incrustado na sociedade portuguesa".
Na peça veem-se bastantes imagens de vários conflitos, desde a II Guerra Mundial até à que atualmentre dizima Gaza e a sua população.
"É uma das coisas que hoje nos perturba imenso, que é estarmos a assistir a um genocídio aos nossos olhos, à hora de jantar, e nada, mas nada, fazemos. E ainda temos dúvidas em chamar àquilo um genocídio", sublinhou Cristina Carvalhal.
O facto de a peça original ter um lado "completamente absurdo", ser "muito crítica e muito cómica", em que o autor "brinca muito com os mecanismos teatrais", foram pressupostos que levaram a encenadora a optar pela obra em detrimento de outra do mesmo autor, 'A palavra é de oiro', que não lhe "agradou tanto".
Para a escolha contou também o facto de ser representada no 'Teatro Variedades, no Parque Mayer', por se tratar de "um texto muito popular, para todos, [...] uma comédia".
O texto original de Abelaira discute "o valor real dos chamados factos históricos, dos exércitos, das cidades e dos impérios, para a realização do destino humano", lê-se na sinopse da primeira edição da obra.
Problemas contemporâneos tomam por referência a Antiguidade, mas num jogo que remete para Pirandello, ao nível dos planos do tempo, da realidade psicológica e do absurdo.
A peça parte afinal do século XXIII. Ao descobrir um caminho para o passado, um grupo de pessoas embarca numa nave, alterando a história, como levar os gregos a perderem a Guerra de Troia e Ulisses revelar-se um cidadão negro, opção da encenadora.
Serem ricos e felizes é o objetivo comum de todos os passageiros da nave.
No final, todas as personagens regressam a um "novo século XXIII", alterado o seu passado, trocando de papéis e sem que se recordem do que se passou. Apenas a insatisfação e a perseguição da felicidade se mantêm, levando-os a equacionar se não seria mais fácil alterar o presente.
Ao mergulhar na peça original -- que parte da frase de Pascal "Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, toda a face da terra teria mudado" - Cristina Carvalhal achou que embora Abelaira faça "uma crítica a todo o sistema", versa "muito sobre o lado machista da sociedade". O que se reflete até no facto de o original contar apenas com uma personagem feminina, Calipso.
Entre as alterações, a encenadora exemplificou a mudança de género de algumas figuras, como as do comandante e do professor que passaram a ser do género feminino, o que a fez também "a alterar um pouco a trama".
No terceiro ato, há a introdução de uma lésbica "mais assumida, mas ainda assim não totalmente", por Troia ter ganhado a guerra, causando "mais liberdade e progresso".
Na versão de Cristina Carvalhal há um coro para "chamar também essa ideia de tragédia", um código a juntar à "comédia de absurdo e à ficção científica. Ao nível da linguagem, deu também um tom menos elaborado, tornando o texto "mais quotidiano, mais telenovelesco, se quisermos".
Entre os conceitos que perpassam o espetáculo no Variedade estão temas atuais, como "a masculinidade tóxica, o 'armário', o machista e o privilégio do macho hetero cis branco", frisou a encenadora, sublinhando achar não estar a "trair o espírito de Abelaira".
Apesar das alterações ao passado e da evolução diferente daquelas personagens, "tudo continua a ser a mesma coisa". "Tudo continua a ser sobre pessoas privilegiadas a explorarem outras pessoas", mantendo-se a ideia da "perseguição de felicidade, que também é uma coisa muito contemporânea", conclui a encenadora.
A interpretar estão Alberto Magassela, Ana Sampaio e Maia, Carla Maciel, Heitor Lourenço, João Grosso, José Neves, Manuela Couto, Nuno Nunes e Sílvia Filipe.
O cenário e figurinos são de Nuno Carinhas, a luz de Manuel Abrantes, o som de Sérgio Delgado e o vídeo de António Borges Correia.
Na assistência de encenação está Leonor Buescu, na de cenografia e figurinos, Henrique Pimentel, enquanto a operação de luz é de Ana Carocinho.
A peça é uma uma produção da Causas Comuns, com o Teatro Nacional D. Maria II, e vai estar em cena de 12 de setembro a 05 de outubro, com récitas à quarta e quinta-feira, às 20:00, à sexta, às 21:00, ao sábado, às 19:00, e, ao domingo, às 16:00.
A estreia do espetáculo é antecedida pela entrega do Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II.
Nos dias 26 e 28, as récitas terão audiodescrição e, no dia 28, também será interpretada em Língua Gestual Portuguesa.