Aterrar em Madrid, ser noite de Champions e embrenhar-se no barulho das luzes do Santiago Bernabéu é contexto intimidador para qualquer equipa, ainda mais se marcar dois golos feitos em quatro minutos da primeira parte ao Real, em casa do Real, virando a equipa que mais cedo se pôs com tal vantagem no estádio nos últimos quase 20 anos. O imbróglio para o Borussia Dortmund, apesar de tão paradoxal, era óbvio. Recolher aos balneários no intervalo a ganhar por 0-2 aos merengues significava fazer cócegas a um monstro invisível, jamais alguém lhe tocou, mas do qual todos os que saibam das magias negras do futebol estão cientes.

Pouco mais de quatro meses desde Wembley, onde alemães e espanhóis jogaram na última final da Liga dos Campeões, território que o Real Madrid encara como sendo seu, um cataclismo pareceu montado no Bernabéu. Os de amarelo e negro eram lestos, jogavam bem, mostravam-se eficazes com a baliza no horizonte. Os de branco existiam apáticos, onze sombras a pairarem no relvado, um rol de estrelas que juntas não fizeram o brilho de uma durante uma hora.

Ao intervalo, no cair da ficha do pequeno trauma, os jogadores do Real “estavam todos muito calados” e só disseram “uma coisa”, destapou a confidência de quem, no segundo ato no relvado, diria bastantes mais através dos seus atos:

“‘Se marcamos o primeiro, remontamos outra vez.’”

Susana Vera

Não foi de Vinícius Júnior o golpe que inaugurou o rugido especial do Bernabéu, aquela crença vinda das profundezas que milhares de gargantas traduzem num coro que não é bem uma celebração de golo ou uma manifestação de alegria. É a exaltação de uma inevitabilidade. “Sabíamos que na nossa casa tudo por acontecer”, diria o brasileiro quando as emoções aterrarem depois de uma ida à estratosfera, mais uma na coleção de noites de Champions do estádio que recheia a memória com as sequelas que não cessam de aparecer deste tipo muito específico de façanha.

Vendo-se a perder, alfinetada no orgulho, a equipa do Real Madrid despertou para uma fúria que será sim muito sua, um estado de transe que engole sejam quais forem os jogadores, estejam eles lá há muito tempo ou ainda a conhecer as assoalhadas: em pouco mais de 100 segundos, fizeram dois golos para o 2-2 só depois dos 60 minutos, o Bernabéu a rosnar no seu êxtase tão particular quando entrou o primeiro deles, vindo da cabeça de Rüdiger, antes do de Vinícius. Mas ainda não estavam bem dentro do fuso horário Real Madrid.

Quando ligaram o pisca e curvaram para a saída dos 80 minutos, entrados nessa íntima fronteira onde encontraram tantas boias de salvação em jogos feitos na corda-bamba de noites mais urgentes do que a desta terça-feira - não uma eliminatória, apenas o terceiro encontro dos oito que terão nesta Liga dos Campeões -, os merengues, impelidos pelo espírito da remontada, resgataram-se a eles próprios.

O capitão Lucas Vázquez marcou aos 83’, selando a reviravolta com um disparo da direita da área onde surgiu de rompante, a encarnar as memórias deste século de Sergio Ramos, Cristiano Ronaldo ou Karim Benzema, e da lenda esculpida pelas palavras de Juanito, décadas antes: “90 minutos no Bernabéu são muito longos.” Os futebolistas do Real Madrid não despertam do sono pela manhã, só acordam durante os jogos, urgidos por uma desvantagem. Dado o grito de alívio no terceiro golo, mais um laçarote posto no embrulho de nova remontada, ainda haveria fôlego monólogo de um futebolista decidido a tomar conta da equipa.

Vini Jr. já teve a sua generosa dose de noites mágicas no Bernabéu. O brasileiro chegou ao Real a tempo de ser amigo de Benzema, de receber a alma do que é vestir de branco pela osmose de Kroos e Modric, tem duas Champions conquistadas para o atestar, mas nunca, em seis épocas, cravara a sua pegada goleadora assim, numa só partida. E à sua maneira. Aos 86’ e aos 90’+3 desencantou dois golos frenéticos, desencadeados por correrias iniciadas com a baliza lá longe, a desafiarem as probabilidades ou se calhar não tanto, muitas das chicotadas de Vinícius costumam ser assim, maratonas velozes que o brasileiro descola longe do alvo porque lhe sobra energia no meio da habilidade.

No segundo dos seus golos, Vini despiu a camisola, mostrando a secura das fibras e dos músculos torneados num corpo de que cuida meticulosamente no ginásio do Real, no que tem em casa, na marquesa dos fisioterapeutas e com banhos gelados, criogenia, calças de terapia de compressão, cinta de pesos para corridas subaquáticas, toda uma estirpe truques tecnológicos com que dizem estar cada vez mais vidrado em esculpir-se, à moda do penúltimo ‘7’ merengue - não de Eden Hazard - rumo à Bola de Ouro.

O Bernabéu gritou, em uníssono e no final do jogo, por essa distinção. “A exibição que fez é digna dela, é o jogador que mais a merece”, defendeu Lucas Vázquez, capitão amigo. “O Real pensou que comprava o melhor jogador do mundo quando já tinha o melhor futebolista do mundo”, elogiou, à distância, Jamie Carragher, comentador televisivo destas noites e desamigo de Kylian Mbappé, murcha contratação galática que discretamente presenciou Vinícius a mostrar que leme talentoso em Madrid ainda está nas suas chuteiras.

Na segunda-feira há gala da FIFA, será entregue a Bola de Ouro e a última noite no Santiago Bernabéu, como aquelas últimas impressões que são as que mais contam, teve uma explosão de Vini Jr. na apenas segunda vez que uma equipa suplantou uma desvantagem de dois golos para vir a ganhar com uma vantagem de três. A primeira tinha sido do Real Madrid, curiosamente não no seu coliseu, mas em casa do Liverpool, outro templo do futebol.

* e o título deste texto foi surripiado, na íntegra, a um tweet Eder Sarabia, treinador do Elche, da segunda liga espanhola, cuja mira calibrada a escrever nas redes sociais acertou na muche do misticismo que fomenta o Real Madrid na ‘sua’ Liga dos Campeões.