
Não consideremos, por um momento, o imortal debate, insonso também por tão não definitivo estar condenado a ser, de em qual deles, dos que Roland-Garros une pela primeira vez na final de um Grand Slam, residirá o melhor - a questão é uma de preferências. Do mútuo de um ser de uma maneira que o outro provavelmente jamais será.
Carlos Alcaraz é fogo baldio, movido a labaredas incandescentes que formam um tenista capaz de na mesma troca de bola ser artista de uma pancada por entre as pernas, bater um amorti de algodão, espancar uma direita fulminante, sprintar da rede ao fundo do court, fazer uma espargata, esfolar-se todo e, se perdido o ponto, sorrir e aplaudir o adversário. Levedado a temperaturas mais baixas, Jannik Sinner engana no cabelo, tem a cor de chamas mas o seu norte é frio, eis um jogador de igual alta intensidade sem ter um cardápio com o mesmo alcance técnico na variedade de pancadas, prima por ser mecânico a martelar bolas que se tornam sempre mais difíceis do que quando lhe chegaram, máquina incansável a varrer o campo que acaba por destroçar os adversários, quando não pela superior execução, precisamente pelo cansaço que causa. O entertainer espanhol não tem celeumas em dar primazia ao desfrutar, o competidor italiano robotizou os seus trejeitos para aniquilar oponentes.
O farto pergaminho deste parágrafo é curto para fazer jus ao contraste de estilos proporcionado pelos líderes desta geração do ténis, nascidos nos anos dois mil, agora que a melhor, a anterior, finda de vez no cerco da idade que também já apanhou Novak Djokovic. Com sete Grand Slams entre eles (quatro para Alcaraz, três na propriedade de Sinner), demorou a coincidirem numa final. Teve de ser a superfície mais lenta e retardadora da bola a oferecê-la: se era para ser, então que as condições favorecessem o prolongamento da ocasião.
Prometedor disso se mostrou o início de conversa, com Alcaraz ultra pressionante a bater bolas bem dentro do campo, estorvador a devolver golpes e nos posicionamentos, a buscar a rede sem cerimónias, logo a ter pontos para roubar o serviço a Sinner, incomodado e resguardado na linha de fundo. Frenético o jogo inaugural, deu ténis durante 12 minutos, salvando-se o italiano da tentativa de furto. O seguinte inverteu os papéis, seria o espanhol afastar a hipótese de um break, tínhamos a confirmação de dois relâmpagos a igualarem-se nas descargas elétricas com certas nuances: o ruivo confiava na potência e no martelo no fundo do court, mais linear no plano, enquanto o rival exibia os heterónimos da sua raquete para ir variando no tipo de balas.
Ao quarto jogo do parcial não houve oportunidades para quebras de serviço, Jannik fez as pazes com as traseiras do campo, ousou experimentar, soltar-se, avançou uns metros no traçado alaranjado para contrariar Carlos com mais do que mais do mesmo. A mudança voltar-se-ia contra o italiano, que ficou sem o serviço no jogo seguinte, cedente às acelerações à mínima nesga do espanhol, às esquerdas paralelas brutais, aos amortis escondidos até à última, às visitas supersónicas à rede.
Quando as trocas de golpes entravam naquele excesso de velocidade absurdo em que hoje apenas estes dois tenistas não são multados, Sinner prevalecia. O problema era que Alcaraz inventava apeadeiros técnicos pelo meio para impedir que chegassem sempre a esse ponto. Tinha o italiano que responder, fê-lo rapidamente, devolvendo o presente na cena seguinte. Como? Sendo la macchina, honrando a alcunha que mereceu no seu país, maquinando uma agressividade nas pancadas decidida a encurtar o tempo disponível ao espanhol para pensar o que fazer. Já Djokovic se queixara de tal carência, a de o nascido onde Itália já se confunde com a Áustria ser um pesadelo que suga aos adversários a margem para matutarem no que podem fazer a seguir.
Pífias as distâncias a separá-los, quase nada permitia conceder superioridade a um em detrimento do outro. Arrelias incluídas, foi Sinner assistido no pé, às tantas, por causa dos pensos contra as bolhas, depois seria Alcaraz examinado num olho para receber soro fisiológico, talvez contra o pó de tijolo. A escorregadia superfície premiaria (6-4) o italiano pela constância de ser um muro, tremendo a nem uma pestana mover do seu sítio, à maior quando lhe tocava responder ao serviço. A variabilidade do arsenal de Alcaraz tem um efeito devastador, mas igualmente o pode afetar: quando Jannik estabilizou na aptidão para devolver o que fosse, chegasse de que forma viesse, o espanhol abanou.
Tremelicou inclusive. Viu-se ‘Carlitos’ sem tampa para as emoções, mal tinha começado o segundo set e gritava para uma mão aberta no ar, também para os treinadores na bancada, frases de frustração, ele é assim, tanto exuberante nas reações como calmo, pouco depois, a indicar à árbitra a marca de uma bola chamada fora e que era válida a favor de Sinner. Desportista como o desporto devia ser em qualquer freguesia, o oscilante espanhol murchou durante um tempo enquanto o italiano, farejando a intermitência, nutriu a regularidade da violência da sua raquete.
Cada pancada era achega para Alcaraz se manter lá ao fundo, do seu lado, sem arriscar coisas diferentes, aprisionando-o no estilo de troca de golpes onde o italiano era letal. Num ápice chegou ao quatro a um, brutal a disparar balázios de uma força tal que nem tinham como regra ressaltarem em cima das linhas - bastava irem na direção do rival que a velocidade, o peso, essa megatonelada de energia parecia retrair o tenista de El Palmar. Vestido com uma camisola listada em padrão quase futebolístico, faltava-lhe uma reação à canalização de poderio que Sinner fez parecer impenetrável durante o segundo parcial.
Equipado a verde e azul berrantes, tons de Luigi irmão de Mário, a sugerir o imaginário dos irmãos italianos, canalizadores de profissão e de bigode no rés-do-chão dos narizes inventados pela Nintendo para um videojogo nascido bem antes de ele existir, Jannik jogava com uma certeza a roçar a imunidade ao erro. Contra a sua tubagem que ligava cada chapada na bola à bofetada seguinte, depois a outra, e à palmada posterior, tardou Alcaraz a congeminar uma resposta. Ouvia-se o espanhol a arfar entre pancadas nos pontos mais longos. Às tantas chegou a rir-se por falhar uma breve oportunidade de colocar pressão e por-se na frente num jogo de serviço do rival.
Por esquizofrénico que pareça, foi aí que se restabeleceu.
Repetindo, ‘Carlitos’ é assim, quase corda de iô-iô, volátil por oposição à postura incrivelmente robotizada de Sinner que lhe confere as suas fortalezas. As do espanhol não, provêm desse coração que mantém umbilical à raquete. Aos poucos, refez-se da sua travessia moribunda, refundou o bufete do seu ténis e Roland-Garros reviu as amostras do seu melhor. Quando empatou a cinco o set, o Philippe-Chatrier comungou num cântico de “Carlos! Carlos!” e pela primeira vez na final escolheu um lado. Quando forçou o tie-break com um jogo de serviço em branco, as bancadas exultaram. Alcaraz bem que escolhera, no prélio, o lado da moeda com o estádio desenhado antes de a árbitra a arremessar ao ar para se decidir quem começava a servir.
A arena, de repente, era dele.
Mas Sinner impôs um teto a esse foguetão no tira-teimas (7-6, 7-4 no desempate), de novo imperial no primeiro serviço - ganhou 75% dos pontos durante o segundo parcial - e irredutível nos momentos de pressão, resistindo à refundada capacidade de Alcaraz em usar todo o seu arsenal. Os ângulos dos disparos do líder do ranking, até em situações-limite com ele agachado ou de pernas estendidas, punha-no a atacar nas correspondências em que o espanhol mais o acossava. Como se tal fosse possível, o italiano parecia nunca realmente estar cingido a defender.
O terceiro set, malandro, intuiu que seria uma sequela do anterior com o exato mesmo guião, Carlos Alcaraz foi quebrado no arranque, barafustou na direção da assoalhada da sua equipa na bancada, soava a expressão de desespero. Era o espanhol a ir buscar o seu trampolim. Impôs depois um break a Sinner, e mais um, baixou o italiano o recrutamento dos cavalos disponíveis no seu motor e o espanhol debruçou-se em cima dele, o manancial do seu ténis de novo em exibição enquanto Jannik, cansado ou simplesmente a humano, era visitado pelo erro. A final atravessou o seu riacho menos espetacular, os pontos encurtados, só três ou quatro trocas de argumentos.
O jovial furacão de talento espanhol, mescla de cabeza, corazón y cojones como lhe dizia o avô e tem ele tatuado na pele, parecia embalado para reclamar o parcial essa fórmula. Chegou a ter um quatro a favor e todo um público parisiense empolado nessa crença. Cada ponto de ‘Carlitos’ valia um monumental festejo. Forçou um quarto ato, reclamou o 6-4, mas quem vestia as cores de Luigi lembrou que a final era como uma irmandade: podia Sinner ser empurrado para baixo, ficar na retaguarda, embora sem nunca, mesmo visivelmente cansado, se deixar afastar para ficar um pequeno ponto no retrovisor. Nem a jogar um pouco também contra a plateia.
Pela primeira vez neste Roland-Garros alguém vencia um set ao italiano - e quebrava a sua série de 29 consecutivos em Grand Slams. Proeza por si só para Alcaraz, um maquiavélico pintor de raquete em vez de aguarela que se descobre na linha do sismógrafo; vai buscar a alma aos altos e baixos, terraplana adversários por momentos, deixa-os consertar os estragos e logo a seguir volta a decepá-los no ânimo. A final virava, agora sim, uma discussão entre o tipo constantemente no K2, a manter-se quase sempre lá, e outro que tocava no Evereste de quando em vez. Eram os dois picos do ténis atual em pleno uso das suas versões.
O desgaste nos corpos ia-lhes à cabeça, com o encontro a precipitar-se rumo às quatro horas de duração um e outro estreitaram o funil das suas decisões. Já não iam a tudo, nem tentavam tudo. Eram mais parcimónios, queriam que os pontos fossem gaiatos e não esticassem às rugas e barbas grisalhas. A final arrepiou caminho, mas ressuscitou o espetáculo. O martelo gélido de Sinner voltou a ser-lhe leve no braço, catapultando pancadas demolidoras. Alcaraz era toda a sua panóplia de recursos, nunca unidimensional, mas a sua vertigem para arriscar fê-lo cego em momentos que aconselhavam ao conservadorismo. O espanhol seria quebrado pelo dono da melena da cor do solo. Quando esse italiano pôs tudo na escalada final, a sua constância alcançava a retribuição definitiva.
E Sinner reservou para a folga dos três match points que teve no serviço do adversário o teste do azeite na água para o espanhol. Na mistela entre a tectónica pressão do momento e o peito-feito de Alcaraz, desaproveitou todos. Nunca um deles vencera um Grand Slam ao outro e o ar infestou-se dessa lembrança que impeliu o auto-resgate do campeão em título e fez hesitar quem admitiu, na véspera, que este seu bom némesis o empurra a ser melhor jogador. Em resumo, a final haveria de culminar no teste a esta afirmação.
A mão, o braço, a mira, todo o esqueleto tremeu a Jannik Sinner, os seus 191 centímetros a vacilarem perante a magnitude da ocasião. Não que o italiano tenha descido o nível à catástrofe, longe disso. Alcaraz elevou o seu aos píncaros e as bolas do italiano ficaram um pouco embaciadas, caindo fora de campo nos brutais pontos que ambos trocaram até o mais delgado deles ser quebrado. Houve um 5-5. Na intergaláctica dimensão do que estava em jogo, Sinner haveria de retribuir o desportivismo, avisando a árbitra de que uma bola assinalada fora tinha sido dentro. Os génios reconheciam-se, juntos espezinhavam aquela parvoíce de tudo valer para se ganhar.
Para lá das quatro horas estávamos quando veio o tie-break. Vieram também uma espantosa direita cruzada de Alcaraz e dois ases da sua catapulta. Sinner mandou vir um smash, sem certamente ter pedido o par de erros que cometeu no seguimento. O público veio com um coro de apoio a Carlos, retribuidor do que os neutros pretendiam: o 7-4 fechou o 7-6 a seu favor. Seja feita a vossa vontade, vinha aí mais ténis.
Salvem-se eles de lesões, mantenham-se afastados de azares e finais desta estirpe, repletas de volte-faces na ação, pontuadas por alguém a agarrar-se à beira do promontório apenas com a pontinha dos dedos e nós suspensos com eles, e haveremos de ter muito mais ténis estratosférico. Celestial mesmo, com entrada diretamente no panteão das melhores finais de Roland-Garros. Com os titãs da nova era com os bofes de fora, fustigados pelo cansaço, o quinto e derradeiro set extraiu o melhor das suas resistências. Com o ponteiro do altímetro sem saber o que marcar, finalmente se viram brechas na armadura de Sinner, humano que afinal é, a refilar consigo próprio e a dar a raquete a provar do chão.
Alcaraz roubara-lhe o serviço, tentava fugir, e o italiano não escondia que algo de físico o apoquentava. Estava de rastos, ou parecia. Já a final era supimpa noutro aspeto: superando as 4h42, ficaria como a mais longeva da história de Roland-Garros.
Teria a contenda acabar, como não, a escancarar outra costela de contraste. Sinner a desmanchar a carapaça, já sem estancar a emoção, mas umas sensações brotadas do desgaste que ligou à ligeira frustração, às vezes irritação. Com a frescura a ir-se, desvanecida a energia do tanque, o foco de Jannik de fugas, pingou água dos canos. Manteve-se vivo quando serviu, com o saque ainda teve agressividade de bola para encurtar os pontos e ganhar alguns. Sem esse tiro de partida, já pouco podia contra a inacreditável frescura de Alcaraz, um solista que arranja combustível nos nervos, que das reações negativas salta para as boas. Que chegou a parecer perdido e agora sabia tudo.
Mais de cinco horas antes, ainda os tenistas estavam nas catacumbas do Philippe Chatrier, a cerimónia de abertura da final pôs violinistas a interpretarem uma versão de “Harder, Better, Faster, Stronger”, dos Daft Punk, despida de cantorias. Chamaram artistas de instrumentos clássicos para tocarem essa canção moderna, dançando como se no barulho das luzes de uma discoteca. A fusão, sem querer, seria uma vénia a ambos os tenistas. Ao 5-5 no quinto set. Ao universo paralelo para o qual transportaram a final, algures noutra galáxia e eles a deixarem-nos espreitar como é a vida lá no planeta distante onde habitam, sozinhos.
Quando Alcaraz ameaçou, em definitivo, ser o mais duro, rápido e forte em court, Sinner agigantou o seu primeiro serviço, resgatou forças de algures. Ainda estava por apurar o melhor, mas foi aqui, nas últimas da decisão, quando as distinções já eram tão ínfimas, que apareceram os melhores pontos da final. O ténis feito nave espacial, com winners a 200 quilómetros por hora, amortis de cetim, bolas a beijar as linhas depois de alcançadas à rasca, respostas a serviço que eram bofetadas triunfais na bola.
Enfim, era o ténis elevado ao inexplicável.
Jamais um tie-break, nem mesmo um super, como este, seria justo para o perdedor. No desporto, a justiça nada importa ao resultado, esse sentimento não joga. Alcaraz chegou a ter um 7-0 de vantagem, prova de que as raquetes podem mentir. Foi Carlos a prevalecer, incrédulo ao deixar-se estender na terra batida, a contemplar o céu. Caía a noite já em Paris, as estrelas despertaram pouco depois. Há duas com lugar cativo lá cima. O melhor acabou por ser o espampanante espanhol, recompensado com o seu quinto Grand Slam contra os três do exausto italiano.
Esta foi, sim, o melhor jogo entre Carlos Alcaraz e Jannik Sinner. É o melhor que o ténis tem hoje para dar. Haja este contraste entre estas duas forças gravíticas para muitas mais núpcias, porque nós continuaremos a gravitar em seu torno. Mesmo que demore cinco horas e vinte e nove minutos.