
Rui Borges cumpriu o objetivo de conquistar o bicampeonato e reforçou-o ao levar também a Taça para Alvalade, enquanto terceiro treinador de uma época em que foi perdida a peça mais importante de toda a engrenagem leonina: Ruben Amorim. O presidente Frederico Varandas quis alguém que pensasse da mesma maneira desde o banco – ou seja, não estragasse o que estava a ser feito –, assumindo, se o percebeu, a quebra imediata de carisma na liderança e de influência em outros departamentos do futebol do clube. Foi assim que lançou João Pereira às feras no Sporting.
A aposta correu mal, o que o obrigou a estancar a sangria com o então técnico do Vitória de Guimarães, que já justificava o olhar de clubes de maior estatuto. Borges chegou e imediatamente quis mudar o plano, porém o seu sistema era um corpo estranho para um processo vigente há cinco anos e este rejeitou-o. Teve de recuar e terá ficado com um sabor agridoce na boca, de que aquelas conquistas não eram completamente suas e que as próprias dúvidas que pairavam sobre o seu trabalho e identidade teriam de ser dissipadas de uma outra forma.
O sucesso permitiu-lhe começar esta temporada. Quis recomeçar à sua maneira. Já escrevi e repito: tem esse direito e não há ninguém que lhe possa dizer, com certezas, que não vai ser feliz.
Da ‘linha de três’ para os 4 defesas nos leões
A mudança não está a ser, contudo, feita sem custos. Comecemos pelo óbvio. Se o modelo de Amorim tinha como foco os três centrais, a ideia era um pouco mais abrangente, preenchendo ainda o corredor interior com os médios-centro e a ajuda dos falsos extremos, o que empurrava os adversários para os flancos, obrigando-os depois a cruzamentos que esbarravam nas três torres defensivas, sobretudo se saíssem pelo ar.
Um aspeto importante é que esta estabilidade central, com o compromisso de todos nos momentos com e sem bola, permitia que tivesse alas e não laterais: nos últimos tempos, Geovany Quenda à direita e um pouco mais constrangido Geny Catamo pela esquerda.
Ainda no 3x4x2x1 que sentiu necessidade de manter, Rui Borges recuperou os laterais, sobretudo à direita: Fresneda ganhou uma nova vida, com Quaresma, central adaptado, como mais uma opção. À esquerda, Maxi Araújo foi-se impondo a Matheus Reis desde as primeiras tentativas com a linha de 4. Catamo e Quenda passaram a ser alas, aproximando-se das balizas rivais, mas seria necessária uma escolha entre os dois em breve.
Assumindo que Hjulmand e Morita mantêm papeis mais ou menos semelhantes e se Amorim contava com um núcleo defensivo (vamos chamar-lhe assim) de cinco elementos, Borges apoia-se em seis. E, desde logo, anula uma vaga para um dos seus melhores desequilibradores.
Antes de passarmos para aí, é necessário acrescentar que o novo leão trata o espaço da mesma forma. Obviamente que a pressão mais alta procura roubar a bola ou direcionar a saída para os pontos fracos dos rivais, mas estende-se em largura no relvado em 4x4x2, contra o 5x4x1 de Amorim. Se isso pode atrapalhar as ideias de envolvimento pelos flancos por parte dos adversários, também é verdade que o corredor central ficou mais desprotegido, o que obriga Hjulmand a ser ainda mais Hjulmand na recuperação de bola, com o apoio de Morita ou Kochorashvili.
O xerife lesionado
Se não há central do atual plantel leonino que não saiba sair a jogar, a verdade é que aquele que parece mais bem preparado para uma dupla de centrais, face à dimensão física, é o agora lesionado Ousmane Diomande.
O costa-marfinense parecia ir lutar pela titularidade com Zeno Debast, que tem como principal argumento a capacidade de meter o passe vertical mais longe, desbloqueando as zonas de pressão dos rivais, e agora será o belga, menos impositivo nos duelos, o provável escolhido. Ainda há St. Juste, ainda que deva fazer parte da lista de transferíveis poderá também ele ser até prova em contra opção, tal como Eduardo Quaresma.
Os ‘três’ do 4x2x3x1
Há quatro vagas do meio-campo para a frente e não cinco, uma vez que os alas desapareceram. Luis Suárez foi contratado para ser o 9 e vai discutir a posição com Conrad Harder. Melhor no apoio frontal, na forma como ataca o espaço, acelera com bola e percorre toda a largura, o colombiano deixou, e com uma pequena amostra apenas, o jovem sueco já a pensar na vida. Acabou-se a discussão sobre quem deve estar no 11 nos próximos encontros.
No início de Borges em Alvalade, Quenda passou para a esquerda, quando, com Amorim, começava à direita. O regresso do cerebral Pedro Gonçalves após ausência por lesão, a par da afirmação plena de Trincão, deixam apenas um lugar disponível, a ser discutido pelo extremo já contratado pelo Chelsea e por Geny Catamo. O moçambicano tem ganho a batalha, com o jovem a entrar na rotação durante as partidas, o que até poderá complicar-lhe a vida nas expetativas de afirmação em Stamford Bridge.
Porquê Catamo e não Quenda à direita?
Se Pedro Gonçalves não fosse obrigatório, pela inteligência e capacidade de resolver um encontro a partir do espaço entre linhas, Quenda teria o seu espaço, como já teve antes com o atual treinador, no flanco esquerdo.
O mesmo aconteceria, acredito, se Pote tivesse conseguido convencer como 10. Talvez aí Trincão partisse da direita como gosta e Quenda acrescentasse largura à esquerda, tornando-se então Geny o preterido (uma vez que sente-se mais fora de água na esquerda). Mas tal não aconteceu e o ex-Wolves e SC Braga parece ser o menos mau a jogar imediatamente atrás do avançado, sobretudo agora com um que acrescenta fluidez e movimentos de arrastamento à sua frente.
Não sendo o cenário ideal, porque não só limita as diagonais de Trincão como o coloca a pisar os mesmos terrenos que Pedro Gonçalves, é, para já, o melhor de todos os utilizados. E, em teoria, entre Geny e Quenda, o primeiro é mais capaz de atacar a largura à direita, uma vez que o segundo procura mais vezes canais interiores para cruzar ou rematar, e Rui Borges prefere não congestionar ainda mais os movimentos ofensivos da equipa.
Bandeiras amarelas na transformação
As especificidades do perfil de jogadores importantes tornam a mudança de sistema, desvalorizada pelo técnico com a ideia de que as dinâmicas é que importam, um processo pelo menos lento. A vitória sobre um frágil Casa Pia deu moral aos jogadores e a resposta de que talvez precisassem para acreditar ainda mais nas ideias do treinador. No entanto, as bandeiras amarelas (e não vermelhas) continuam por lá. O 4x2x3x1 é possível, todavia está longe de parecer o sistema ideal para os jogadores tem ao seu dispor.
Até o 4x3x3, que já usou na cidade-berço, parece caminho menos tortuoso, ainda que forçasse Pedro Gonçalves a partir do meio-campo e imediatamente pelo meio, uma missão pela qual não parece morrer de amores. Mas essa é uma decisão que apenas compete ao treinador. Que, conforme quis, viverá e morrerá com ela. Para já, não lhe falta coragem.