
O futebol é uma das áreas em que o fenómeno da globalização se expressa de forma mais efetiva, pelo que é normal um pouco por todo o mundo portugueses ligados à modalidade.
Depois de uma carreira de 13 anos como futebolista, foi em 2006 que João Prates transitou para a carreira de treinador, no Brotense. Entre 2005 e 2015, esteve em vários clubes em Portugal, isto antes de emigrar.
Tendo saído de Portugal há dez anos, João Prates acumulou experiência em países como Arábia Saudita, Noruega e Lituânia. No entanto, a época 2024/25 foi marcada por uma transferência mais inusitada, já que rumou ao Iraque para orientar o Naft Maysan.
Apesar de o técnico já ter confirmado o adeus à Liga Iraquiana agora que a temporada está a chegar ao fim, o facto de nos termos cruzado com a informação de que um treinador luso estava neste país do Médio Oriente despertou a nossa curiosidade. Daí até falarmos com João Prates foi uma distância curta.
«Vim para trabalhar como treinador dos treinadores»
A conversa com João Prates arranca com um esclarecimento deste em relação às funções que desempenhou em 2024/25. «Vim para trabalhar como treinador dos treinadores. A La Liga patrocina a Liga do Iraque e a ideia deles era trazer alguém que ajudasse todos os treinadores do clube - da equipa sénior até ao futebol de formação - a evoluir. Tive alguns jogos com a equipa A e outros com a equipa B. Estive mais envolvido nos treinos da equipa A e nos jogos com a equipa B», explica.

O técnico português afirma ainda que «o objetivo para o futuro é trazer a metodologia europeia para o clube». No entanto, destaca uma das falhas do projeto iraquiano: «Não tínhamos um departamento de scouting porque acham que é irrelevante. Acredito que o clube tenha potencial para fazer isso, no entanto, será necessário trazer mais gente de fora e haver uma maior abertura para as ideias que vêm. O que acontecia muitas vezes em reuniões é que pensávamos uma coisa e dez pessoas não concordavam. Até fico a pensar 'Será que estou engando?' porque é difícil aceitar a nossa ideia perante a diferença cultural que existe», avalia.
João Prates descreve também os futebolistas iraquianos: «O jogador iraquiano, um bocado à imagem do mundo árabe, é evoluído tecnicamente. Depois falta-lhe o conhecimento de jogo. A nível tático, a liga iraquiana é ainda muito rudimentar e isso reflete-se muito no futebol de formação do país, pela falta de conhecimento dos treinadores.»
O treinador português, de 52 anos, vai ainda mais longe. «O nível de preparação do jogo foi outra lacuna que encontrei. Têm muitas dificuldades a preparar uma semana de treino corretamente. As diferenças culturais são enormes e os estrangeiros não têm um trabalho fácil. Penso que se a liga continuar a apostar e a abrir a porta ao mercado europeu através dos treinadores, o jogador iraquiano terá tudo para crescer no panorama do futebol mundial», assevera.
«Chamaram a polícia porque pensaram que éramos homossexuais»
Ainda que os últimos meses tenham sido passados no Iraque, João Prates partilha que teve outras propostas antes de rumar ao Médio Oriente. «Na altura tinha saído da Lituânia e o lado financeiro acaba por pesar na nossa vida. Tinha uma proposta da Indonésia, mas a verdade é que quem me colocou aqui foi alguém que tinha trabalhado comigo na Arábia Saudita e tinha-me indicado porque sabia no que é que podia ajudar o clube.»

«Antes de experienciarmos ficamos na dúvida sobre como seria. Não me arrependo, mas, em dez anos fora de Portugal, foi a experiência mais difícil, tanto pelo contexto cultural como pelo contexto desportivo. Há uma falta de conhecimento e uma dificuldade em aceitar novas ideias e metodologias, mesmo do treino. Sem dúvida que o contexto é muito difícil para um treinador europeu», atira.
Fora do contexto desportivo, a experiência foi também um desafio para João Prates: «Vim para uma cidade que sofreu muito com a guerra, quando o Iraque foi invadido. É um país que ainda tem muitas imagens da guerra que aconteceu.»
Ainda assim, falta de segurança nunca foi um problema. «Durante a minha estadia de 11 meses, houve algumas situações que me fizeram pensar um bocadinho, sobretudo após o que aconteceu na Síria, que é um país próximo e tem um líder perigoso. Mesmo dentro do Iraque existe algum receio que estes grupos voltem a surgir. No entanto, nunca me senti inseguro na minha vivência aqui. Por exemplo, quase todas as ruas aqui têm um carro de polícia. O mais difícil são as diferenças culturais e o clima», revela, partilhando uma história caricata que demonstra as diferenças culturais.

«Deixo aqui uma história que conto muitas vezes a amigos: na primeira semana, éramos um staff de treinadores estrangeiros e fomos procurar restaurantes mais próximos daquilo que é a comida europeia, mas na Arábia Saudita, os restaurantes têm um espaço para famílias, para homens e para mulheres», começa, indo mais longe:
«Alguns tinham a informação em inglês e outros em árabe. Como não percebíamos árabe, entramos num restaurante cuja comida se aproximava mais à europeia e o senhor ficou apavorado e começou a gritar pela polícia. Quando esta chegou, compreendemos que estávamos na zona de família e o senhor do restaurante pensava que éramos um casal homossexual. São coisas que acontecem por aqui.»
«Gostava de ter uma oportunidade em Portugal»
Em relação ao futuro, o técnico assume o desejo de regressar ao seu país natal: «Já são dez anos fora de Portugal e gostava de ter uma oportunidade. A minha carreira tem sido em projetos difíceis, mas a conseguir resultados. Sei que estou afastado de Portugal há muito tempo, mas o lado financeiro já não pesa tanto como no início da carreira.»
«É esperar que a oportunidade aconteça, não basta só eu querer, é preciso alguém nos querer e acreditar no nosso trabalho. Provavelmente o futuro passará pelo estrangeiro; ainda que tenha recusado o convite para renovar aqui. Portanto, é esperar que o mercado abra para vermos o que acontece», acrescenta.
*com Henrique Martins