
Não será fácil de imaginar um antigo militar da Alemanha nazi tornar-se herói de ingleses, mas foi o que aconteceu com Bert Trautmann, que com um período de glória no futebol de terras de Sua Majestade enterrou um passado de ligação a um dos piores regimes da história da Humanidade.
Falamos de alguém que de paraquedista da Luftwaffe (força aérea do Terceiro Reich) se tornou num respeitado guarda-redes em Inglaterra: assim se poderia resumir a reviravolta épica, com honras de filme — The Keeper — da vida do homem nascido a 22 de outubro de 1923 em Bremen.
Bernhard Carl Trautmann iniciou o seu percurso no futebol profissional em 1949/50, pela porta do Man. City, aos 25 anos. É este o início da parte boa da história e a idade tardia para se dar a conhecer no desporto rei expõe o seu passado sombrio. Anos anos, estava às ordens do regime de Adolf Hitler, na II Guerra Mundial. Conseguiu escapar aos russos, à resistência francesa, mas acabaria capturado pelas forças britânicas e feito prisioneiro de guerra.
«Vagueei pelos campos até ao cair da noite. Dei por mim perto de uma aldeia. Estava tudo muito calmo. Algo não parecia estar certo e entrei numa quinta para me abrigar. Do nada, os americanos saltaram para cima de mim», contou mais tarde, em 2004, no conforto da sua casa à beira-mar na zona de Valência, Espanha, a Andy Mitten, a propósito da captura. «Depois ouvi o clique das armas. Estavam prestes a disparar sobre mim (...) Não faço ideia do porquê, mas o oficial disse-me para me afastar. E foi o que fiz. Corri e corri, por cima de arbustos e através de campos... Fui direito a seis soldados britânicos camuflados. Eles foram menos complacentes.»
Os pensamentos de uma possível execução foram interrompidos por palavras inesperadas: «Olá Fritz [referência britânica aos soldados alemães na II Guerra Mundial], vai uma chávena de chá?» Mal sabia aquele militar nazi — que já tinha questionado a futilidade da guerra e arriscado ser baleado pelas SS quando pensou em desertar —, que o futuro o promoveria a lenda de um clube inglês.
Depois de retido na Bélgica, foi em Inglaterra que cumpriu pena — de Essex passou para Marbury Hall, perto de Northwich, Cheshire, antes de se fixar no PoW Camp 50, em Ashton-in-Makerfield, Lancashire, onde a queda para a bola veio ao de cima.
Destacava-se nas partidas de futebol. Curioso o facto de ter dado nas vistas do meio-campo, só tendo calçado as luvas numa altura em que uma lesão tinha esgotado as opções para a baliza — precisamente a posição que lhe valeu um lugar na história do desporto-rei.
Impressionou tanto que recebeu convite do St. Helens Town, nos arredores de Wigan. Entre os 24 mil alemães que decidiram ficar em Inglaterra nos últimos repatriamentos de 1948, Trauttmann trocou o nome Bernhard por Bert (mais fácil de pronunciar), esteve ao serviço do Governo britânico numa unidade de eliminação de bombas em Liverpool e trabalhou numa quinta, enquanto dava nas vistas no clube amador. A atenção do Man. City não tardou.
O clube não resistiu às capacidades do alemão, vendo nele potencial para substituir Frank Swift, e o que se seguiu foi um jogo particular com o St. Helens para tirar-teimas. Não houve dúvidas e a 7 de outubro de 1949 o louro de olhos azuis tornou-se jogador do Manchester City, clube pelo qual chegaria a somar 545 (!) encontros, ao longo de 15 épocas, de 1949 a 1964. Mas não teve início fácil, como seria de esperar. Não pela falta de experiência — acreditava Trautmann que a formação como paraquedista (da loucura à agilidade) tinha sido benéfica para se destacar entre os postes —, mas pela origem.
O terrível passado estava demasiado fresco na memória de pelo menos 20 mil adeptos que se opunham à contratação e seria difícil superar esse desafio, que contou com a ajuda do rabi de Manchester, Alexander Altmann: «Nenhum homem pode ser julgado em nome de um povo inteiro.» E, depois da contestação inicial ao kraut (alusão aos alemães) em Maine Road, acabariam mesmo por ser as suas habilidades dentro das quatro linhas a ditar a sentença: culpado? só de manter a baliza dos citizens a um nível que poucos esperariam possível.
Sem beliscar o mérito dessas capacidades, foi a atitude em campo, num momento tão doloroso quanto caricato, que acabaria por dar-lhe uma atenção especial no futebol. Afinal, não é todos os dias que se assiste a futebolistas a permanecerem em campo com o pescoço partido. Foi o que lhe aconteceu nos últimos 15 minutos da final da Taça de Inglaterra com o Birmingham, a 5 de maio de 1956, em Wembley. O City tentava erguer o troféu, que falhara na final da época anterior e que tinha conquistado pela última vez em 1933/34, conseguiu-o graças a um triunfo por 3-1, mas o ponto alto foi o heroísmo do guarda-redes alemão de olhos azuis.
Quando Peter Murphy se preparava para fazer estragos, o gigante alemão antecipou-se, foi atingido no pescoço pelo joelho do adversário e, apesar das dores, que o deixaram estendido no relvado, não deixou o campo nos 15 minutos que faltavam (perante a impossibilidade de substituições).
Na altura de receber as medalhas pelo príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, este perguntou-lhe porque tinha o pescoço de lado e um torcicolo pareceu-lhe a explicação mais plausível. «Porque jogou os últimos minutos com a cabeça de lado?». «Não sei, Alteza, não consigo mexer o pescoço» terá sido a conversa — só depois do jogo, ao fazer exames, soube do diagnóstico: fratura da cervical e luxação de cinco vértebras. «Herói da final da Taça de Inglaterra esteve próximo da morte, diz médico», escreveu o The Sun. Foi considerado jogador do ano nessa época pelo sindicato de jornalistas.
Um mês depois, enfrentaria tragédia, com a morte do filho de seis anos, atropelado. Duro golpe para o homem que encantou dentro dos relvados e que fora deles procurou ultrapassar as cicatrizes da guerra na relação entre os dois países. Que só não acrescentou a seleção ao currículo porque na altura esta só recorria a jogadores que jogavam na Alemanha, o que no Mundial de 1954 o reduziu a um mero tradutor da Mannschaft em vez de estrela. Após pendurar as chuteiras foi treinador — Mianmar, Tanzânia, Libéria e Paquistão foram seleções orientadas.
À glória que já angariava, acrescentou mais uma, em 2004, quando foi condecorado pela rainha Isabel II com a Ordem do Império Britânico, pela importância na reaproximação entre Alemanha e Reino Unido no pós-guerra. «Sou aquele que partiu o pescoço». «Sim, eu sei», terão sido as palavras então trocadas. Em 2005, entrou para o Hall of Fame do futebol inglês.
Para sempre também ficará o reconhecimento de Bobby Charlton, que na altura o considerou o melhor de todos os tempos na sua posição, ou de Lev Yashin, lendário guardião soviético, que não hesitou em dar-lhe créditos — «Só houve dois guarda-redes de classe mundial. Eu fui um e o outro foi aquele jovem alemão que jogava em Manchester, o Trautmann».
E era esse o reconhecimento que queria, como manifestou a Andy Mitten há mais de duas décadas, apesar de ter sido um momento insólito a reforçar o papel de herói: «Não queria ser lembrado como o homem que partiu o pescoço na final da Taça, quero ser lembrado como um excelente guarda-redes.» Morreu em 2013, aos 89 anos, talvez ciente de que o pescoço partido ficaria eternizado.