
Convencionou-se falar dos 100 metros como a prova-rainha. É a prova-rainha no atletismo, um dos momentos desportivos mais esperados de quatro em quatro anos, a cada Jogos Olímpicos. Na natação, a lógica é um pouco mais complicada.
Porque será sempre uma questão de rivalidades. Nos Jogos Olímpicos de Atenas, por exemplo, pouca gente se lembrará dos 100 metros livres, mas quem não se recorda dos 200 metros livres, com três dos melhores de sempre da natação, Michael Phelps, Ian Thorpe e Pieter van den Hoogenband, em luta direta, com vitória para Thorpe? Há quem lhe chame a “Corrida do Século” e não estará errado.
Nos Jogos seguintes, talvez seja a prova dos 100 metros mariposa que ainda ressoe na memória, depois de Phelps bater Milorad Čavić por um centésimo, mesmo à chegada. Mais recentemente, nos Jogos de Tóquio, seriam os 400 metros entre Ariarne Titmus e Katie Ledecky a levarem a taça de duelo mais esperado: a australiana, a jovem desafiante, Ledecky campeã olímpica no Rio e então três vezes campeã mundial.
Seria Titmus a derrubar a rainha e três anos depois, nos Jogos Olímpicos de Paris, repetiu-se o duelo nos 400 metros, mas agora com nova protagonista. Summer McIntosh, que em Tóquio, com 14 anos, foi 4.ª, e com 17 chegou à prata, atrás de Titmus, novamente campeã. Ledecky foi bronze.
Nestes Mundiais de Singapura, a prova que mais fascínio criava era ainda mais longa, algo de facto paranormal, já que nas piscinas, muito mais do que nas pistas de atletismo, a velocidade reina. Porque previa-se um duelo geracional, um desafio definidor nos 800 metros: Summer McIntosh, 18 anos, a grande devoradora de medalhas destes Mundiais, com três ouros individuais, a tentar bater o pé à maior de sempre, Katie Ledecky, campeã olímpica na distância com 15 anos em Londres 2012 e depois mais três vezes depois disso, no Rio, Tóquio e Paris, há um ano.
Só que aos 28 anos, a norte-americana, que à partida para esta final tinha seis títulos mundiais nos 800 metros livres, nem sequer dá sinais de abrandar - ainda em maio voltou a bater o recorde mundial da distância, foi a sexta vez e quase 10 anos depois da última ocasião que o havia logrado.
Sem Titmus presente em Singapura, ela que tentou desafiar, sem sucesso, Ledecky nos 800 metros nos dois últimos Jogos Olímpicos, foi McIntosh que tomou para si a provocação à maior de sempre, ela que até a bateu no início de 2024 na distância numa prova menor nos Estados Unidos, no que seria a primeira derrota em 13 anos para Ledecky nos 800 metros. Já em Singapura, no início da semana, a jovem canadiana foi a melhor nos 400 metros livres, Ledecky foi apenas 3.ª, numa distância em que nunca foi tão dominadora como nas duas mais longas.
E se toda a gente esperava uma prova extraordinária nos 800 metros, não terá havido desilusão. Aliás, terá saído ainda melhor do que a encomenda, já que às duas favoritas juntou-se Lani Pallister na luta pela vitória, intrometendo-se com todo o mérito num duelo que, ingenuamente, se pensou ser matéria de apenas duas atletas. A australiana conseguiu seguir sempre Ledecky e McIntosh, com as três a nadarem abaixo do recorde mundial durante boa parte da corrida.
Ledecky esteve sempre na dianteira, mas com as rivais muito perto, como diligentes cães pisteiros. Tudo se resolveria nos derradeiros 100 metros, impressionante quando se fala de uma prova de longa distância. Na penúltima viragem, Summer McIntosh assumiu pela primeira vez a liderança, mas pagaria mais tarde o esforço. Ledecky respondeu, recuperou a dianteira, deixando para trás o que parecia ser uma ligeira quebra.
Já nos últimos 50 metros, Lani Pallister, que parecia arredada da vitória segundos antes, teve forças para um último ataque, ultrapassou McIntosh de forma heroica, mas já não conseguiu chegar a Ledecky, lenda absoluta da natação, impassível face aos desafios das concorrentes, uma senhora na postura e na forma de competir. Foi o sétimo título mundial da norte-americana nos 800 metros, uma enormidade. Desde 2013, em Barcelona, que ninguém a bate aqui. E em Los Angeles, daqui a três anos, a estas três vai juntar-se seguramente Ariarne Titmus: estará aqui a prova-rainha dos próximos Jogos Olímpicos?
Batendo na parede aos 8:05.62, Katie Ledecky fez a 4.ª melhor marca da história. Pallister (8:05.98) tornou-se na 3.ª melhor de sempre, atrás da norte-americana e de McIntosh, que terminou a prova com um inesperado bronze e com cara de poucos amigos. O nível da prova foi tão impressionante que Simona Quadrarella foi 4.ª, com um tempo que é novo recorde da Europa (8:12.81).
Já Ledecky mantém-se serena, inabalável, como se nadar fosse tão natural para ela como respirar. Aos 28 anos, cheia de provas nas pernas e nos braços, carregada de medalhas - esta foi o 23.ª de ouro em Mundiais - é a tranquilidade em forma de gente, garante que “nadar é o melhor do mundo”, que nesta fase da sua vida já não tem “nada a perder” e por isso tudo lhe parece sair com a mesma vontade, potência, seriedade. E, por saber que as rivais também lhe dão força, não as esqueceu, “é um orgulho” diz ela, estar no meio de tantos novos talentos, poder também mostrar-lhes o caminho. Mas daqui a três anos, é certo que Katie ainda as vai querer bater.