Sabe-se lá quão veloz ia, na vertigem da descida nem a própria teria noção da rapidez. Com os seus neurónios habituados a ziguezaguear a alta velocidade, no transe que os mantém ligados à corrente da ação e desligados da consciência do perigo que é fazê-lo, Mikaela Shiffrin sentiu a neve a mal. Descia o circuito de Killington, em Vermont, viseira fechada e capacete posto na perseguição à sua centésima vitória em provas da Taça do Mundo, quando uma frenética curva à esquerda fez os seus esquis tocarem-se. O aparatoso trambolhão, pernas no ar e cambalhotas no branco, foi custoso de ver.

A norte-americana embateu em duas portas na pista, perdeu um dos esquis no percalço centrifugador, estatelou-se contra a barreira lateral. Terminou com espalhafato o seu slalom gigante. Já na segurança do hotel, sentada entre paredes, gorro na cabeça, reagiu ao acidente em conversa com a “NBC” e só aí Mikaela Shiffrin viu, de fora, o que lhe acontecera. “Ó, meu Deus, que ângulo, isto é… deslumbrante”, soltou friamente, frenando a fala por um segundo. “Considerando tudo, tive bastante sorte”, embrulhou depois a reação dada ao canal de televisão, sem grandes laivos de emoção.

Aferir a origem da sua postura não indiferente, mas a deixar escapar alguma frieza, era um exercício incauto.

Poderia ser a força do hábito a enregelar a sensibilidade de Shiffrin, uma vencedora que vive sem vizinhança no seu púlpito: esquiou sozinha, pela primeira vez, aos 4 anos e compete desde os 15 com o embalo que lhe deu 99 vitórias (e 154 pódios) em provas da Taça do Mundo de esqui, mais do que qualquer homem ou mulher, inédita em fazê-lo em todas as especialidades (slalom, slalom gigante, downhill, super-G, combinado e slalom paralelo); e foi duas vezes campeã olímpica, além de possuir sete títulos mundiais. Afinal, somos animais de costumes, é isto que Mikaela faz da vida, o surreal para olhares alheios será o normal para ela.

Ou poderia também ser a calejada carapaça de quem para muito ganhar teve de muito cair na existência a deslizar na neve em que tal é inevitável: nos últimos Jogos de Inverno, em Pequim, muito se debateu acerca da invulgar errância da norte-americana, ao sofrer quedas cedo nas provas de slalom (quinta porta) e slalom gigante (décima). “Não costumo falhar, nunca tinha vivido esta situação, não sei como lidar com ela”, confidenciou, em 2022, a apetrechada de louros e conquistas, no suposto auge das suas capacidades. Contudo, aprendeu sem demoras, porque no par de épocas seguintes regressou às vitórias. Voltou a ser campeã mundial de slalom gigante em 2023, ultrapassando as lendárias 86 vitórias de Ingemar Stenmark, e em 2024 constelou a proeza de vencer uma prova da Taça do Mundo, na Suécia, vinda de um calvário de lesões e com tempo para fazer apenas quatro treinos antes da competição.

Por força da profissão, Mikaela Shiffrin caíra bastantes vezes. Mas o acidente sofrido em novembro, na descida de Killington, no Vermont, foi diferente.

Ficou com contusões, a pele com nódoas negras e uma ferida no abdómen que lhe causou um traumatismo nos músculos oblíquos. Contou dois meses em recuperação, a curar o físico pelos vistos animadamente, publicando vídeos alegres nas redes sociais a mostrarem boa-disposição na versão internáutica que a atleta queria mostrar. Regressou à competição no mês passado, com um humilde 10.º lugar em Corchevel, França, ainda a tatear a melhor forma. Os Mundiais de esqui alpino que decorrem em Saalbach, na Áustria, desde 4 de fevereiro e vão até domingo, 16, seriam a prova de algodão para o estado da imperadora das pistas, outra consagração à espera dos seus 29 anos mas dependente de como o seu corpo se restituíra da queda recente.

O problema de Mikaela Shiffrin está na cabeça, não no físico. “Não estou cá. Sinto-me bastante longe, estou a lidar com obstáculos mentais para voltar à intensidade necessária para competir”, admitiu a esquiadora, na segunda-feira, ao despejar no Instagram o coração, sem pudor em mostrar um traço do intangível que a atormenta. E de tentar fornecer uma explicação para o que lhe foge à compreensão: “Honestamente, não antecipava experienciar tanto desta espécie de Transtorno de Stress Pós-Traumático após o acidente em Kilington. Achei que a minha paixão e vontade de competir iriam pesar mais do que as barreiras mentais. Se calhar será esse o caso com o tempo, mas ainda não cheguei lá.”

Como o piloto de Fórmula 1 que desliga os sensores do perigo ao carregar no pedal além dos 300 quilómetros por hora ou o mergulhador de falésias que salta para a água que vê quase 30 metros lá em baixo, a amígdala de Shiffrin mantive o seu sossego durante décadas, imune a sobressaltos receosos. A grande distinção na esquiadora norte-americana era o quão amestrado teve, desde sempre, o pequeno órgão com que vivemos dentro do cérebro, à espera de sinais nervosos que lhe deem ordem para acionar o instinto e disparar os nossos temores. No abismo da velocidade, quando a prudência chama as cautelas, Mikaela nem pensava. Agora não: “Tem destruído a minha alma aperceber-me do medo que sinto da prova que há apenas dois meses amava mais do que tudo.”

O slalom gigante é onde os esquiadores se precipitam para as maiores velocidades e a norte-americana sente-se “mentalmente bloqueada” para atingir “outro nível de ritmo” que lhe deixe “ter poder nas curvas”. Mikaela Shiffrin não está no seu máximo, mas competirá na especialidade de slalom, mais lenta, e na prova por equipas. O medo não a congela tanto aí, como não a fez perecer no momento de baixar a guarda e desvendar ao mundo o que atormenta a provável melhor atleta que o esqui alpino já teve.

Ela desenhou a sua linha paralela à de Simone Biles: também a mais invulgar, porque incrível, das ginastas que rodopiam no ar, com piruetas incessantes, saltos mortais que o podem mesmo ser e daí o nome, admitiu os seus medos em 2021, quando abdicou de participar em alguns exercícios dos Jogos Olímpicos. Padecia de twisties, tinha medo de se perder no ar. Em Paris fez as pazes com o que nada de mal tem e ganhou três das suas 11 medalhas de ouro. “Como uma das minhas companheiras de equipa me disse”, desvendou Mikaela Shiffrin, “o melhor que posso fazer é continuar a tentar”. A neve ficará à sua espera - “É isso que vou fazer.”