As suas reportagens para a CNN Portugal e os artigos que tem escrito para jornais nacionais e espanhóis, sobre o conflito que estalou a 24 de fevereiro, têm sido duramente criticados por comentadores, jornalistas e algumas figuras políticas portuguesas, tendo sido acusado de falta de imparcialidade e de ser um «pé de microfone» da propaganda russa. O facto de estar filiado no PCP e não esconder a sua atividade política (foi candidato pela CDU nas últimas autárquicas) acirraram o discurso de quem desconfia de que não está a ser isento. Em entrevista ao SAPO, o repórter de guerra explica como conseguiu entrar na região separatista de Donbass (onde quase sempre tem estado) e relembra os dias e noites na então martirizada e sitiada cidade de Mariupol. Quando questionado sobre a controvérsia do qual tem sido figura principal, garante que apenas está a noticiar aquilo que vê a partir “do outro lado”, aponta o dedo ao que considera ser uma “campanha para tentar denegrir” e “silenciar” o único jornalista português “a trabalhar do lado do invasor”, além de negar que o posicionamento político do PCP em relação à guerra esteja a condicionar o que faz. “Devo ser, neste momento, o jornalista português mais escrutinado, mas não tenho problemas com isso, desde que os outros também o sejam”, considera.

O Bruno já esteve na região de Donbass em 2018, quando era evidente que os acordos de cessar-fogo assinados em 2014 e 2015, entre representantes diplomáticos da Ucrânia, da Rússia e das autoproclamadas República Popular de Donetsk e República Popular de Lugansk (e que ocupam quase todo o território de Donbass, no leste da Ucrânia), eram algo que apenas existia no papel – as constantes violações do que fora acordado e os ataques armados entre as forças ucranianas e os separatistas pró-russos persistiam. O que estava lá a fazer nesse ano?

Naquela altura eu já tinha interesse em seguir este conflito. Nesse ano, um grupo musical italiano veio aqui a Donbass e surgiu a oportunidade de os acompanhar [N.R. - refere-se à Banda Bassotti, um grupo de ska-punk fundado na década de 1980 em Roma e que se assume como comunista e antifascista, com músicas cujas letras têm um forte pendor político]. Foi uma porta que se abriu e que me permitiu vir a esta região para tentar perceber o que realmente se estava a falar, como é que esta gente vivia, como é que eles viam a guerra civil, qual a situação militar. Este primeiro contacto serviu de iniciação para um interesse que depois se manteve ao longo dos anos.

Entretanto, a 24 de fevereiro de 2022, as forças militares russas invadem o território soberano da Ucrânia e também entram nas zonas separatistas pró-russas de Donetsk e Lugansk. Quando é que chega a este palco de guerra?

Nos últimos dias de março, embora tenha tentado vir antes, quando já pairava no ar a ameaça de que a Rússia podia invadir a Ucrânia – só não foi possível porque estava planeado eu ir com um grupo de jornalistas e um deles ficou infetado com COVID-19, o que atrasou toda a viagem. No meio destes atrasos a guerra começa, pelo que houve um período em que deixámos de saber como era (e se era) possível entrar na região, pois a obtenção de um visto, ainda antes da guerra, já não era uma coisa fácil. Além do mais, os aeroportos no sul da Rússia deixaram de funcionar [N.R. - sendo a partir daí que se faria a jornada até ao leste da Ucrânia, até território da autoproclamada República Popular de Donetsk].

E como consegue, finalmente, entrar na região e obter uma autorização para cobrir a guerra a partir de uma zona sob controlo das forças militares russas e separatistas?

Os entraves que surgiram obrigaram-nos a uma logística que até então desconhecíamos, mas que agora é fácil de seguir. No fundo, trata-se de chegar a Moscovo de avião e depois apanhar um autocarro que demora 24 horas a chegar a Donbass.

Naturalmente, e como sucede em qualquer conflito, quando se quer fazer jornalismo tem de se pedir autorização às autoridades locais, e aqui o caso não é exceção. Em Donbass, as autoridades de facto são as separatistas [pró-russas] e foram elas que me deram um acreditação para trabalhar como jornalista, da mesma forma que deram a jornalistas da RAI [a emissora pública de televisão e rádio em Itália], da televisão pública catalã e de outros países da União Europeia.

Mas primeiro teve de entrar em Donbass, e essa é outra história. Quem lhe deu, e como, uma autorização para lá entrar a partir da fronteira russa?

Parece existir uma grande curiosidade, em Portugal, sobre se tenho ou não autorização dos russos para trabalhar aqui. A verdade é que, de um ponto de vista formal, eu na Rússia não tirei um visto de jornalista, tirei um visto turístico (um visto normal) para poder viajar pelo país. Fiz isto por duas razões: a primeira porque não ia fazer jornalismo no território da Federação da Rússia; e segundo porque apenas precisava de atravessar esse mesmo território para chegar a Donbass.

Ao chegar a Donbass, a pessoa que me ajudou a abrir a porta para aqui entrar foi um importante líder sindical da federação de sindicatos de Lugansk. Foi ele que me ajudou a fazer os contactos necessários para obter uma acreditação – disse-me com quem tinha de falar, que papéis apresentar, como é que tinha de fazer o pedido. Neste momento trabalho como uma acreditação dada pelas autoproclamadas República Popular de Lugansk e República Popular de Donetsk.

Enquanto jornalista, e de início, qual o foco principal que queria explorar em relação a este conflito?

O meu primeiro objetivo era o de fazer um retrato social da guerra, como viviam os civis face ao elevado nível de conflitualidade que existia em Donbass. E quando falo de Donbass falo dos dois lados que aqui coexistem, o russo e o ucraniano: há muito tempo que existe uma guerra civil entre as duas partes e em fevereiro esse conflito aumentou de intensidade e agressividade, com a entrada dos militares russos. Quis retratar as consequências trazidas pelas novas circunstâncias à população civil, mas também tinha um grande interesse pela parte militar da guerra. Nas primeiras semanas fui a lugares que tinham sido bombardeados, tentei perceber melhor a história e contexto deste conflito, visitei aldeias que tinham estado sob controlo da Ucrânia e que depois passaram para o controlo dos separatistas.

E quais as maiores dificuldades e constrangimentos que encontrou ao fazer o seu trabalho?

A principal dificuldade é a língua com que se comunica. Apesar de estar a aprender um pouco, ainda não consigo falar russo. É um grande problema porque estamos sempre a depender de intermediários, criando barreiras com quem queremos entrevistar e mais dificuldades no contacto com as autoridades. Isto leva ao risco de algumas vezes existir uma espécie de truncamento da mensagem que recebemos e, depois, daquela que queremos passar enquanto jornalistas.

Outro problema, e que é muito normal em zonas de conflito armado, é que procuramos [os jornalistas] sempre fazer tudo aquilo que queremos, mas, ao mesmo tempo, evitar ser condicionados pelas autoridades que controlam determinado território.

Como é que o Bruno sabe que não está a ser instrumentalizado por um dos lados desta guerra, neste caso aquele que está a garantir a sua segurança física? Uma das críticas que lhe fazem é que o seu trabalho jornalístico aparenta estar condicionado pelas forças separatistas e russas e por aquilo que lhes interessa em termos de informação.

Não é verdade que a maior parte dos meus trabalhos tenham sido condicionados, mas também não é mentira que para alguns deles tive de lidar com as próprias autoridades militares e civis. Sobre isso não há dúvidas. Todavia, é preciso frisar que isso acontece dos dois lados do conflito, junto dos jornalistas que cobrem cada um dos lados.

Tanto para a Ucrânia como para a Rússia e os separatistas, o controlo da informação é uma estratégia militar – e uma das principais características desta guerra é que a comunicação assumiu uma importância fulcral para ambos os lados. Todos eles procuram passar as informações que mais lhes interessam, para também convencer a opinião pública. Mas não há qualquer novidade no que estou a dizer, pois é prática habitual em qualquer conflito.

“É muito mais seguro, para um jornalista, trabalhar acompanhado por militares do que irmos por nossa conta para a linha da frente. Os jornalistas embedded, inseridos dentro de unidades militares, também existem nesta guerra, seja no lado da Ucrânia – com vários jornalistas portugueses – como no lado que estou a cobrir.”

Pode ser mais específico quanto ao tipo de interferências que já teve de enfrentar?

Em relação ao meu trabalho, aquilo que terá acontecido várias vezes é a sugestão ou a vontade das autoridades em quererem mostrar determinadas coisas e, simultaneamente, não mostrar outras.

Vou dar dois exemplos muito concretos. Em várias situações pediram-me para não filmar veículos militares: mas eu acredito que isso também suceda junto de quem cobre o lado da Ucrânia. E isto tem uma razão de ser, que é o de não quererem que inimigo identifique o local e o tipo de material que ali está. Outra situação é quando tentam que demos um enfoque maior a determinada figura importante, como o presidente de uma câmara municipal. Mas tudo isto aconteceu-me em cerca de um quinto das reportagens que fiz, porque a esmagadora maioria dos trabalhos não tiveram qualquer interferência por parte de autoridades civis ou militares. Eu tive a possibilidade de trabalhar de forma livre e, sobretudo, fora da alçada dos militares.

Claro que é muito mais seguro, para um jornalista, trabalhar acompanhado por militares do que irmos por nossa conta para a linha da frente. Os chamados jornalistas embedded, inseridos dentro de unidades militares (tal como aconteceu nas guerras do Iraque e do Afeganistão), também existem nesta guerra, seja no lado da Ucrânia – com vários jornalistas portugueses a serem acompanhados por tropas ucranianas – como no lado que estou a cobrir, com também muitos jornalistas a serem acompanhados por forças russas ou separatistas a determinados locais. Isso sucede porque de outra forma não seria possível ir a essas zonas em segurança.

No meu caso, tentei trabalhar em conjunto com um jornalista italiano, até porque assim era mais seguro para nós, pelo que todo o trabalho que fizemos em Mariupol foi realizado sem cobertura militar, apesar de nos terem alertado para o enorme perigo a que estaríamos sujeitos. Foi um risco que corremos, mas é isso que nos permite contar histórias que outros não contam.

No que se refere às regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, e tendo em conta o que tem testemunhado, como se pode resumir, de momento, a situação que aí se vive.

De início estive na região de Lugansk e visitei os locais que estão mais perto da linha da frente, pelo que acabam por ser os mais bombardeados: estamos a falar das zonas de Stakhanov e Kirovsky, por exemplo, nas quais visitei várias terras. O que aí se vive é complicado, como é óbvio.

Eu penso que podemos distinguir duas situações dentro do que está a ocorrer. Uma delas são as cidades que são bombardeadas diariamente, mas que não estão em zona de combate terrestre. Falo de cidades como Stakhanov, Kirovsky e até Donetsk, onde neste momento estou, e que todos os dias são bombardeadas por diferentes tipos de projéteis de artilharia ucraniana, os quais acabam por destruir habitações civis, lojas, escolas e hospitais. Em paralelo, tivemos cidades sitiadas como Mariupol [situada a sul da região de Donbass] ou Sievierodonetsk, onde houve ferozes combates nas ruas. [N.R. - As duas urbes acabaram por ser totalmente conquistadas e ocupadas pelos militares russos e pelas forças separatistas pró-russas, a primeira em meados do mês de maio e a segunda nos últimos dias de junho.]

“Quando se está numa zona sob controlo de forças russas ou separatistas não se pode estar à espera de que surjam civis dispostos a acusar a Rússia de crimes, porque elas não têm liberdade para o fazer. […] Do lado da Ucrânia também deverá existir gente que quer acusar as forças ucranianas de crimes, mas não sentem liberdade ou segurança para o fazerem. Isto é uma guerra. Obviamente que foram cometidos crimes pelos dois lados.”

Foi precisamente a partir de Mariupol, quando estava cercada e sob ataque russo, que fez as suas reportagens de maior impacto mediático, tanto para a televisão (a CNN Portugal) como para a imprensa escrita. Enquanto jornalista, sentia que estava a conseguir retratar o que realmente estava a suceder na cidade e a transmitir o que a população civil verdadeiramente sentia no meio daquele caos? Vou mais longe, se me permite: quando entrevistava alguém, que garantia existia de que a história que essa pessoa contava era fidedigna?

Foi a situação que mais acompanhei. Fui muitos dias a Mariupol e cheguei a dormir na cidade com outros jornalistas, para conseguirmos cobrir melhor o que lá se estava a passar e não ter de fazer viagens de ida e volta de duas horas, cada uma. Mariupol, do ponto de vista humanitário, foi um caso muito preocupante. Foi uma zona onde houve combates rua a rua, onde as forças ucranianas disparavam dos prédios enquanto lá em baixo passavam tanques russos. Estamos a falar de pessoas (civis) que tiveram de ficar fechadas em caves durante meses, com dificuldade em sair à rua para ir procurar água pois estavam sujeitas a serem metralhadas. Muita gente morreu e foi enterrada nos canteiros das ruas, nos separadores das estradas, mas muitos cadáveres ficavam nas ruas. Quando se via pessoas notava-se que não tomavam banho há semanas.

Era tudo muito complicado e de um elevado grau de dificuldade para um jornalista, face àquilo a que assisti, tentar contruir um relato sobre o que se estava a passar e compreender as circunstâncias que levaram a tudo aquilo. Não é nada fácil contactar pessoas que estão numa situação de grande fragilidade e tentar perceber qual a sua opinião sobre o conflito, tentar saber quem é que as vitimou e compreender as dificuldades que estão a passar.

Tal implicava, por parte dessas pessoas, superar uma barreira que não era apenas linguística: por exemplo, uma boa parte das pessoas com quem falei sentia-se pró-russa e assumia essa condição, e acusavam as forças ucranianas de usar edifícios civis para objetivos militares; mas também encontrei gente que acusou as forças russas de cometerem atrocidades de outro tipo. Só que, naturalmente, quando se está numa zona sob controlo de forças russas ou separatistas não se pode estar à espera de que surjam civis dispostos a acusar a Rússia de crimes, porque elas não têm liberdade para o fazer.

No entanto, a pergunta que me faz tem de ser feita para os dois lados. Do lado da Ucrânia também deverá existir gente que quer acusar as forças ucranianas de crimes, mas não sentem liberdade ou segurança para o fazerem. Isto é uma guerra. Não podemos achar, do ponto de vista jornalístico, que há aqui um lado que tem uma auréola na cabeça e que os possíveis atropelos humanos que cometeu podem passar pelos pingos da chuva. Obviamente que foram cometidos crimes pelos dois lados.

“Há muitas pessoas que me acusam de não denunciar os bombardeamentos da Rússia sobre alvos civis, que sucedem do outro lado da linha da frente, mas eu não posso fazer isso porque não estou lá. Não posso falar sobre algo que não estou a ver. Esse trabalho deve ser feito por quem está do outro lado.”

Nas suas reportagens tenta explicar isso, que existem dois lados que se confrontam e matam, com muitas vítimas civis, mas sem esquecer que em 2022 foi a Rússia que invadiu várias partes do território ucraniano – tendo estado, inclusive, muito perto de entrar na capital Kiev?

Eu sou jornalista e estou deste lado [na região de Donbass, a cobrir o conflito a partir de zonas controladas pelas forças russas e separatistas], pelo que a única coisa que posso reportar é aquilo que vejo a partir daqui. Da mesma forma que os jornalistas que estão em território sob controlo ucraniano a única coisa que podem fazer é reportar o que vêm desse lado.

Eu digo isto porque há muitas pessoas que me acusam de não denunciar os bombardeamentos da Rússia sobre alvos civis, que sucedem do outro lado da linha da frente… mas eu não posso fazer isso porque não estou lá. Não posso falar sobre algo que não estou a ver. Esse trabalho deve ser feito por quem está do outro lado.

O maior problema é que existem pessoas que acham que se calhar não deveria existir jornalistas deste lado, que não mostrassem o que se passa aqui. Só que quando eu digo que a artilharia ucraniana atinge alvos civis é porque isso sucede mesmo.

“Acusam-me de não dizer que a Rússia faz ataques a civis, mas no teatro de Mariupol, quando me pareceu que isso tinha sucedido, fui dos primeiros a afirmá-lo.”

Viu e analisou esse tipo de casos com os seus próprios olhos? O jornalista de guerra Carlos Santos Pereira (faleceu em 2021), que na década de 1990 acompanhou as guerras civis que desmembraram a antiga Jugoslávia, percebeu a enorme complexidade deste tipo de conflitos, incluindo o forte jogo mediático que existe para conquistar a simpatia da opinião pública mundial. Nos artigos que publicou (para os jornais Público e Diário de Notícias) chegou a reportar como ambos os lados usavam edifícios civis, incluindo hospitais, para aí instalar artilharia, posições que depois eram destruídas pelo fogo inimigo e provocavam, invariavelmente, vítimas civis e inocentes.

Há cerca de um mês estive num mercado da cidade de Donetsk em que morreram cerca de duas ou três pessoas: quando lá cheguei ainda existia fumo no mercado, muitas bancas estavam carbonizadas, e não existia ali nada que fosse militar. Era um simples mercado de fruta.

No centro de Donetsk há uma escola primária que foi bombardeada, todos os dias passo por lá e a fachada do edifício está totalmente destruída, pelo que dá para ver o interior da escola, as mesas e estantes com livros das salas de aula, as paredes com desenhos pintados por crianças. Esta zona é um bairro residencial, e além da escola foi atingido um supermercado, foi atingido o prédio da frente onde vivem pessoas.

Mas acredita que existe um objetivo deliberado, por parte de forças ucranianas, em atingir alvos civis nessa região pró-russa?

Isso é algo que não sei dizer, obviamente. Pode ser demasiada falta de pontaria, porque são demasiadas as ocasiões em que são atingidos alvos civis nesta cidade, sem que pareçam existir quaisquer objetivos militares. Pode-se dizer que a Rússia faz isso, e, nesse caso, os jornalistas que estão do outro lado devem fazer esse trabalho e denunciar esse facto. Eu estou deste lado e sinto-me obrigado, naturalmente, a cumprir o meu trabalho: que é o de explicar o que se passa aqui.

Da mesma forma que se deve condenar qualquer ataque sobre civis ocorrido do outro lado da linha da frente [em território sob controlo do governo ucraniano], também se deve condenar qualquer ataque sobre civis que ocorra deste lado. Não pode existir dúvida alguma de que os civis, numa guerra, são sempre a primeira vítima, e os jornalistas devem fazer de tudo para denunciar isso.

O jornalista Bruno Amaral de Carvalho numa das últimas reportagens que fez, na cidade de Mariupol. Créditos: Bruno Amaral de Carvalho

Quando estive em Mariupol, no período em que ainda estava sob fogo cerrado, eu fui ao teatro da cidade e estive um dia inteiro dentro das ruínas daquele edifício. [N.R. - O teatro foi bombardeado a 16 de março, no momento em que no seu interior estavam centenas de refugiados civis, sendo que as autoridades ucranianas avançaram com a informação de que tinham falecido 300 pessoas, enquanto a Amnistia Internacional, no final de junho, faz menção a uma dúzia de mortos contabilizados por investigadores, embora admita que nunca se venha a saber o número real de vítimas. Por sua vez, a agência de notícias Associated Press avançou no início de maio com 600 vítimas mortais, após uma investigação sua.] Estive em todos os pisos, tentei contar o número de mortos que vi dentro do teatro e tentei perceber os seus danos estruturais: na peça que fiz sobre o que aí sucedeu referi que era muito grande a hipótese de o edifício ter sido bombardeado pelas forças russas. Contudo, um jornalista não pode assegurar a cem por cento que aconteceu aquilo que ele não viu. Mas a sensação com que fiquei, ao ir ao teatro e ao observar o estado em que estava, é o de que tinha sido um ataque aéreo feito pelas forças russas – digo isto pela forma como o edifício ruiu. Acusam-me de não dizer que a Rússia faz ataques a civis, mas em Mariupol, quando me pareceu que isso tinha sucedido, fui dos primeiros a afirmá-lo.

“Qual o motivo para que nesta guerra em particular deixe de ser uma possibilidade acompanhar o lado do invasor, quando noutras, bem recentes, isso sempre sucedeu e era considerado normal? […] Não se pode mudar de opinião sobre existirem jornalistas a acompanhar o invasor somente porque politicamente se defende um lado.”

Alguns comentadores e jornalistas portugueses, nos média e especialmente nas redes sociais, acusam-no de parcialidade na cobertura que está a fazer da guerra, a partir da região de Donbass. Ana Gomes e João Galamba, duas figuras políticas conhecidas, chegaram a acusá-lo de estar, deliberadamente, a trabalhar em prol da propaganda russa. Entretanto, a 20 de maio, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas fez um comunicado a “repudiar” o que considera “tentativas de censura na cobertura da guerra na Ucrânia”. Como responde a estas opiniões que sobre si vão sendo tecidas?

Parece-me surpreendente que, em Portugal, esta seja a primeira guerra em que se assiste a tamanhas pressões, a assédio e a ataques, devido ao facto de existir um jornalista português que está a acompanhar o lado do invasor [o da Rússia]. Se recuarmos no tempo, podemos ver a cobertura que foi feita aos conflitos na antiga Jugoslávia e à questão do Kosovo, ou a que houve para as duas guerras no Iraque e à outra no Afeganistão – nestes dois países praticamente só existiram jornalistas do lado do invasor –, e em nenhum momento aconteceu [em Portugal] esta campanha para tentar denegrir alguém que estava a tentar trabalhar do lado do invasor. Está-se a criar um ambiente para ‘silenciar’ um único jornalista, sendo que sou o único a reportar a partir do lado das forças russas e dos separatistas pró-russos, enquanto dezenas de jornalistas portugueses já relataram a partir do lado ucraniano. Qual o motivo para que nesta guerra em particular deixe de ser uma possibilidade acompanhar o lado do invasor, quando noutras, bem recentes, isso sempre sucedeu e era considerado normal? Para mim, isso é completamente inadmissível do ponto de vista jornalístico. Não se pode mudar de opinião sobre existirem jornalistas a acompanhar o invasor somente porque politicamente se defende um lado.

Se sinto que consigo testemunhar que de facto houve uma agressão por parte das forças russas ou separatistas, eu fá-lo-ei: tal como sucedeu em relação ao teatro de Mariupol, ou ainda quando as forças russas disseram que o porto desta cidade tinha sido tomado e estava sob seu total controlo, e eu, passados dois dias, disse que isso não era totalmente verdade – apenas tinham tomado uma parte do porto. Reportei ataques aéreos russos à fábrica siderúrgica de Azovstal. [N.R. - Em Azovstal estava entrincheirada a última bolsa de resistência ucraniana da cidade de Mariupol, assim como civis, incluindo crianças, que aí tinham procurado refúgio, pelo que estes também eram vítimas dos bombardeamentos que indiscriminadamente atingiam o complexo siderúrgico.]

Eu não vim para aqui para fazer favores a ninguém. Não andei a brincar às guerras em Mariupol. Aquilo foi guerra a sério. Não é a mesma coisa fazer jornalismo numa cidade que é bombardeada de vez em quando e fazer jornalismo numa cidade em que há combates nas ruas. Houve situações bem complicadas. Eu e outro jornalista italiano éramos verdadeiros piratas. Fintávamos postos de controlo para chegar o mais perto possível do Azovstal e havia soldados que diziam que estávamos loucos. Chegámos ao ponto de convencer uma família a deixar-nos dormir na cave de um hotel destruído para estarmos o máximo de tempo possível em Mariupol. É preciso gostar-se muito do que se faz e é preciso ter uma certa dose de loucura para fazer jornalismo sem cobertura militar em determinadas zonas. Não quero palmadas nas costas, mas gostava que, pelo menos, me deixassem trabalhar em paz.

Neste sentido, foi importante a tomada de posição do Sindicato dos Jornalistas, porque não é só a questão de ‘silenciar’ um jornalista, pois há vários perigos a que estou sujeito enquanto repórter.

“Encontro-me num contexto de guerra e posso ver-me envolvido num cenário em que, de repente, estou do lado contrário àquele em que estou neste momento. Se isso acontecer, que tratamento me darão as autoridades ucranianas?”

De que forma opinar sobre o seu trabalho o pode colocar em perigo?

Estou deste lado a fazer uma cobertura jornalística, mas se um secretário de Estado ou uma antiga candidata presidencial (e ex-deputada europeia) apontam o dedo a um determinado jornalista, obviamente que as autoridades ucranianas estarão atentas ao que dizem, mesmo que seja uma campanha de difamação. Encontro-me num contexto de guerra e posso ver-me envolvido num cenário em que, de repente, estou do lado contrário àquele em que estou neste momento. Se isso acontecer, que tratamento me darão as autoridades ucranianas? Terei o tratamento de um jornalista ou um tipo de tratamento muito diferente, em virtude do ambiente que todas estas pessoas andaram a criar contra mim? Existe um perigo real devido à minha atividade de jornalista, mas parece que essas pessoas não têm qualquer preocupação em relação a isso.

Parece-me surpreendente que estejamos no século XXI, num país que teve grandes repórteres de guerra, e que exista esta discussão em meu redor. Tudo isto porque há um jornalista que está a acompanhar o outro lado.

Olhemos um pouco para o passado e comparemos. Cabe na cabeça de alguém questionar o incrível trabalho do Ryszard Kapuściński em Angola só porque acompanhou as tropas do MPLA? Também vão criticar as reportagens do Carlos Santos Pereira só porque algumas questionavam a narrativa dominante sobre a guerra na ex-Jugoslávia? Vão cancelar o Robert Fisk porque entrevistou o Bin Laden?

[N.R. - O repórter polaco cobriu a guerra civil angolana em 1975 e publicou um livro de reportagens, «Mais um Dia de Vida», sobre o que aí testemunhou. Quanto ao jornalista português, vários artigos sobre a guerra na antiga Jugoslávia, publicados na década de 1990, voltaram recentemente a ver a luz do dia na obra «Do Solidariedade ao Afeganistão – Quatro Décadas de Vida de Repórter». Os contornos das entrevistas realizadas pelo repórter britânico-irlandês a Osama Bin Laden são descritos pelo mesmo em «A Grande Guerra Pela Civilização – A Conquista do Médio-Oriente».]

Devo ser, neste momento, o jornalista português mais escrutinado, mas não tenho problemas com isso, desde que os outros também o sejam.

“Percebo que possam existir dúvidas sobre o posicionamento do partido no qual estou filiado [PCP] e a minha cobertura jornalística. […] Se é para ser escrutinado, que o façam somente com base naquilo que estou a reportar. A posição do PCP é uma coisa, o meu trabalho como jornalista é outra.”

O Bruno é militante do PCP há longos anos e nas autárquicas de 2021 chegou a ser eleito pela CDU para a Assembleia Municipal da Amadora. Esta militância política e ideológica não condiciona o seu trabalho enquanto jornalista, no sentido de que pode induzi-lo a não contrariar a visão oficial que o partido tem sobre a guerra na Ucrânia?

Eu divido muito bem aquilo que é a minha atividade enquanto jornalista daquilo que é a minha atividade enquanto cidadão, a minha intervenção cívica na sociedade. Considero que ambas não são incompatíveis. Posso enunciar uma quantidade de personalidades históricas do nosso jornalismo que, simultaneamente, tiveram uma atividade política e cívica muito importante: é o caso do Mário Mesquita, que foi meu professor na faculdade e faleceu há pouco tempo, tendo sido justamente relembrado e elogiado por toda a comunidade jornalística e académica, incluindo pelo PS (partido ao qual esteve muito ligado) pelos papéis que teve enquanto jornalista e cidadão. [N.R. - Mário Mesquita, falecido em maio deste ano, destacou-se como jornalista e enquanto professor ajudou a formar uma nova geração de jornalistas portugueses. Foi um dos fundadores do Partido Socialista, em 1973, além de ter exercido o cargo de deputado da Assembleia Constituinte pelo mesmo partido em 1975 e 1976, e de deputado da Assembleia da República entre 1976 e 1978. Acabou por se afastar do PS em 1978, mas não deixou de apoiar figuras deste partido em diferentes eleições, como Salgado Zenha e, em anos mais recentes, António Costa, quando esteve disputava a liderança do PS.]

Também podemos falar do Alfredo Barroso, que foi jornalista, deputado e Secretário de Estado [igualmente pelo PS]; ou do Paulo Portas, que ajudou a fundar e esteve à frente do jornal O Independente, tendo sido líder do CDS-PP, ministro por duas vezes e até vice-Primeiro-ministro. Sem esquecer o Francisco Pinto Balsemão, que é o militante número um do PSD, antigo Primeiro-ministro [entre 1981 e 1983] e que ainda se mantém como presidente do Grupo Impresa [N.R. - empresa que detêm a rede de televisão SIC e o semanário Expresso, entre outros títulos da comunicação social – até 2018 a revista Visão também fez parte do grupo].

Face a estes exemplos, até parece que o meu caso é uma surpresa ou algo nunca antes visto em Portugal.

Independentemente deste seu argumento, com certeza que perceberá que isso não é uma garantia de que consegue ser objetivo, isento e imparcial, tendo em conta a sua militância partidária, quanto mais não seja porque alguns dos nomes que menciona já foram alvo de crítica por conflito de interesses, por terem um pé na política e o outro no mundo das notícias?

Percebo que possam existir dúvidas sobre o posicionamento do partido no qual estou filiado e a minha cobertura jornalística. Contudo, creio que essa avaliação deve ser feita olhando apenas para o meu trabalho. Se é para ser escrutinado, que o façam somente com base naquilo que estou a reportar. A posição do PCP é uma coisa, o meu trabalho como jornalista é outra: para mim são coisas completamente distintas.

O PCP tomou uma posição em que condena as duas partes desta guerra, tem uma linha política nessa direção, mas o meu papel não é esse, não é o de fazer proselitismo político nas minhas reportagens. O meu trabalho, como já disse, é o de ser jornalista e mostrar aquilo que vejo suceder.

“Era importante que existisse uma cobertura mais alargada deste lado da guerra, feita por diferentes órgãos de comunicação social. Ficaríamos todos a ganhar se houvesse outras vozes, além da minha, a reportar o que se passa aqui.”
O jornalista Bruno Amaral de Carvalho numa das últimas reportagens que fez, na cidade de Mariupol Créditos: Bruno Amaral de Carvalho

Informou o PCP de que estava de malas feitas para a Ucrânia e que iria cobrir a guerra a partir do lado russo e dos separatistas?

Para todos aqueles que me conhecem terá sido uma surpresa verem as minhas reportagens e saberem que eu estava aqui. Da mesma forma que terá sido uma surpresa para os membros da direção do PCP quando perceberam onde eu estava. Logo, não existe qualquer ligação entre o partido e o trabalho jornalístico que estou a desempenhar.

Acredita que se existissem mais jornalistas portugueses a cobrir a guerra a partir do lado das forças russas e pró-russas, pelo menos em Donbass, a região onde tem estado, continuaria a existir toda esta polémica em relação às suas reportagens?

Parece-me que a pergunta que se deve fazer é esta: qual o motivo para não existirem mais jornalistas portugueses aqui? Sou o único. A resposta a isso ajudaria a explicar se existe ou não uma campanha para que não venham para cá outros repórteres, para cobrir o outro lado da guerra. Era importante que existisse uma cobertura mais alargada deste lado da guerra, feita por diferentes órgãos de comunicação social. Ficaríamos todos a ganhar se houvesse outras vozes, além da minha, a reportar o que se passa aqui.

“Independentemente de ser um conflito que já vem de trás, com um intervencionismo cada vez maior dos EUA, da NATO e da própria Rússia na Ucrânia, a verdade é que estamos face a uma violação do direito internacional pela Rússia: é uma invasão.”

Ao longo de toda a entrevista tem usado a palavra “invasão”, para referir-se ao que a Rússia está militarmente a fazer em território ucraniano. Concorda, então, que é mesmo isso o que está a suceder desde o dia 24 de fevereiro, e não uma “operação militar especial” como as autoridades do Kremlin ainda teimam em repetir?

Quem aponta o dedo ao meu trabalho, com a afirmação de que eu nunca digo que se tratava de uma invasão russa, nunca deve ter lido ou visto as minhas reportagens. Desafio qualquer pessoa a encontrar nesses trabalhos se eu alguma vez usei a expressão “operação especial”. Nunca o fiz. Terei usado algumas vezes a palavra “invasão”, mas por norma uso a expressão “intervenção militar”, pois é a mais usada em diferentes teatros de guerra.

Mas isso não significa que não considere o que está a suceder uma invasão. Independentemente do contexto [histórico, político e militar] da última década, de ser um conflito que já vem de trás, com um intervencionismo cada vez maior dos EUA, da NATO e da própria Rússia na Ucrânia, a verdade é que estamos face a uma violação do direito internacional pela Rússia: é uma invasão.

Quanto mais não seja porque se trata de uma questão de ser coerente, pois a invasão do Afeganistão [em 2001], do Iraque [2003] e os bombardeamentos da NATO na antiga Jugoslávia [N.R. - nomeadamente em 1999, com as principais cidades da extinta República Federal da Jugoslávia – à época já só englobava a Sérvia e o Montenegro – a sofrerem violentos ataques aéreos] também foram violações do direito internacional, foram ações militares realizadas sem o consentimento das Nações Unidas.

No entanto, é preciso frisar que a comunicação – e isso nota-se mais nesta guerra do que em outras – é uma das principais prioridades das forças em conflito, com estas a tentarem introduzir no léxico jornalístico as frases e expressões que mais proveito lhes trazem, do ponto de vista político e militar. Por exemplo, tanto no Afeganistão como no Iraque, como se tratava de outros países a fazerem uma invasão militar, raramente a comunicação social usava a expressão “invasão”, mas nesta guerra não há qualquer inibição em usar a palavra. Eu não tenho problema algum em usar a expressão “invasão”, só acho que não deve existir uma dualidade de critérios e tampouco uma instrumentalização deste léxico.