Mais do que coincidências cronológicas, estas efemérides convidam-nos a revisitar uma obra que continua a inquietar os leitores e a provocar debates, uma obra de um autor que, com a mesma pena, escreveu ficção e romanceou o mundo.

A obra começa com um homem que, subitamente, perde a visão sem nenhuma explicação científica quando se encontra dentro do carro, no meio do trânsito, e que depois se alastrou como uma epidemia, inexplicável e imparável, e então a cidade onde vivia transforma-se num caos, levando as autoridades a tomar medidas extremas que colocam em cena a nossa frágil e irónica condição humana.

Na altura da publicação, poucos poderiam prever o alcance simbólico e profético da obra. O romance foi escrito durante três anos e ficou concluído no dia 8 de agosto de 1995.

O romancista não propunha uma história sobre a perda da visão física, mas sim uma reflexão sobre a cegueira moral, ética e social que se instala quando desaparecem as estruturas que sustentam a convivência humana. Três décadas depois, a cegueira coletiva que Saramago denunciava parece mais atual do que nunca. Vivemos tempos de desinformação, polarização e crises sucessivas — e a literatura, como ele próprio dizia, continua a ser uma forma de ver melhor.

Não é por acaso que, em 2020, durante a pandemia COVID-19, o Ensaio sobre a Cegueira se tornou um dos livros mais vendidos, um fenómeno, em Itália, um dos países europeus mais afetado pela pandemia na altura, chegando ao top cinco na plataforma de vendas Amazon.

O SAPO visitou a Fundação José Saramago e percebemos que o legado do escritor continua vivo na sociedade atual. A presidente da Fundação Saramago e também viúva do autor, Pilar del Río, acompanhou-nos na visita e com ela conversámos sobre o nascimento da obra, a sua influência na atribuição do Prémio Camões e o longo caminho para a atribuição do Prémio Nobel da Literatura.

“Antes de chegar ao Ensaio sobre a Cegueira há algo que me parece fundamental. José Saramago chegou a este livro após ter escrito O Evangelho Segundo Jesus Cristo", declarou Pilar del Río. O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi lançado em 1991.

“É um romance, nada mais. Um romance que se atreve muito, um livro honesto, um livro limpo, que vai com certeza confundir muita gente e que vai indignar também não pouca gente”, afirmou o escritor.

Nas palavras de Pilar del Río, a escrita do romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi um processo muito duro e, na altura, muito importante e era preciso porque o escritor entendeu que devia falar sobre o princípio da civilização cristã; impunha-se uma reflexão sobre a chamada “civilização cristã”. Saramago entendeu que “após transmitir estas bases da nossa civilização, tinha de escrever um romance que fala sobre a cegueira, não sobre a doença, mas sobre o retrato da sociedade, da cegueira”, recorda Pilar del Río.

O Ensaio sobre a Cegueira é reconhecido como um modelo de inspiração para uma reflexão sobre os direitos humanos, um cavalo de batalha da Fundação Saramago, porque “os poderes políticos ainda corrompem o Homem e temos uma grande injustiça no mundo atual uma vez que parece que estamos outra vez numa caverna, resolve-se tudo com a guerra e a nossa busca por amor e pelas identidades estão a ser corrompidas, por exemplo”, afirma a Presidente da Fundação.

A linguagem tratada no romance é densa, cada frase apresenta uma ironia subtil, uma crítica feroz, uma compaixão contida. No centro da narrativa, como noutros romances de Saramago, destaca-se o papel da mulher, neste caso o papel da mulher do médico, que não ficou cega – a única que vê – e que se tornou, depois, como uma testemunha, uma guia e também se transformou num símbolo na luta contra a “escuridão branca” que invade os olhos das personagens, que impede as personagens de ver com claridade. Saramago obriga-nos a confrontar o que resta do humano quando tudo o resto desaparece e a Mulher é um símbolo, neste e noutros romances, da responsabilidade e da luta de quem enxerga num mundo que prefere não ver.

“Antigamente, a Mulher teve sempre um papel secundário. Na obra de Saramago as mulheres têm sempre um papel importante. Falamos sobre a Maria Magdalena, a mulher do médico, a Blimunda e a avó Josefa. Somos (as mulheres) a luz do mundo. Quero dizer também que somos as melhores do mundo”, declara Pilar del Río.

O legado do autor que nunca escreveu para agradar, mas sempre para despertar

Nas suas próprias palavras, o escritor disse que queria que o leitor do romance Ensaio sobre a Cegueira “sofra tanto” como ele enquanto escrevia o romance. “São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”, afirmou o próprio escritor.

"Houve momentos na escrita deste livro em que José Saramago quebrou: «lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam», escreveu nos Cadernos de Lanzarote".

Do Ensaio sobre a Cegueira nascem teses de mestrado e de doutoramento e a obra é citada em artigos jornalísticos e de opinião. O escritor fez vários relatos nos Cadernos de Lanzarote sobre esta obra.

O romance-ensaio manifesta, como já tinha dito anteriormente, "uma problematização e cogitação permanentes acerca do absurdo da dor e sofrimento humanos. (...) A escolha da palavra e do tema da cegueira para o título do romance transporta consigo laivos de humanismo. (...) Saramago preocupa-se com o que o homem é e como é. Esta é uma linha orientadora constante nos seus romances (...)". **

Prémio Camões e o longo caminho para o Nobel da Literatura

Em 1995, o escritor recebeu o Prémio Camões, o prémio literário mais importante no universo lusófono, reconhecendo a sua originalidade e o impacto no mundo da literatura portuguesa e também na literatura mundial. Este prémio foi considerado um passo importante porque em 1998 o escritor foi laureado com o Nobel da Literatura.

Se observarmos melhor os romances do autor, de 1995 até 1998, podemos falar também sobre Todos os Nomes (1997) ou podemos olhar também para A Caverna (2000).

“Os romances de Saramago são só romances. Não são tratados como obras filosóficas, nem de proselitismo político. Os leitores podem entender como pretendem”, afirma Pilar del Río.

O anúncio do Nobel foi recebido de uma maneira inédita. N’A Casa, os dois amigos de quatro patas, Camões e Pepe, do escritor acompanharam o momento com grande entusiasmo: «Que se passa com toda a gente esta manhã? Parecem loucos», eis o relato escrito por Pilar del Río no seu livro A Intuição da Ilha. O próprio laureado não estava em Lanzarote, estava a voar de Frankfurt para Madrid. Dias depois do anúncio, José Saramago contou que teve dois pensamentos: «Deram-me o Nobel, sim, e quê?» e o outro pensamento foi mais doméstico e com sentido mais sereno: “Que estará o Camões a fazer agora?». “Camões era som diário na casa de José Saramago em Lanzarote”, afirma Pilar del Río no seu belo e emocionante livro A Intuição da Ilha.

No seu discurso do Prémio Nobel, José Saramago ofereceu o melhor resumo possível do livro:

"Cegos. O aprendiz pensou: «Estamos cegos», e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante". *

O Ensaio sobre a Cegueira foi adaptado para o cinema pelo realizador Fernando Meirelles. “Blindness” agradou ao escritor, que até chorou no final da estreia, e aquele sublinhou que a adaptação e o guião do filme estavam muito bem feitos e agradou-lhe "em todos os aspetos". Além do cinema, em 2004 o Teatro Nacional São João, em colaboração com o Grupo de Teatro "O Bando" e a Culturgest, produziu uma adaptação teatral do romance, com encenação de Nuno Cardoso. Foi lançada, em fevereiro de 2025, uma peça de teatro, adaptada por Batuhan Yalçin, chamada "Körkük" (Cegueira), entre tantas outras iniciativas culturais que sucederam como glosa e representação desta obra.

No ano em que se celebra as três décadas deste romance tão marcante, a Fundação José Saramago vai lançar uma edição especial do romance, uma edição ilustrada para celebrar o aniversário.

Doze anos depois do lançamento do Ensaio sobre a Cegueira, uma obra que mostra a maturidade na escrita de Saramago, António Costa, na altura era então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, cedeu a Casa dos Bicos para ser a sede da Fundação José Saramago. José Saramago não chegou a utilizar o gabinete que os arquitetos lhe haviam atribuído e por ele visitado em diferentes idas à obra. «Vou escrever aqui vendo os barcos passar no Tejo?», perguntou o escritor ao arquiteto-chefe, Manuel Vicente.*

José Saramago deixou escrita uma declaração de princípios do que deveria ser a sua Fundação que podemos ler na página da Fundação ou no livro citado de Pilar del Río. Desde a sua fundação até à data, a Fundação tem feito um serviço ativo e interventivo na vida cultural de Portugal e colabora com outras fundações internacionais, defendendo coletividades a quem negam o respeito e a igualdade que as leis internacionais proclamam.

"A paz é possível, se nos mobilizarmos por ela. Nas consciências e nas ruas", escreveu José Saramago.

Três décadas depois, a cegueira coletiva que Saramago denunciava parece mais atual do que nunca. Vivemos tempos de desinformação, polarização e crises sucessivas — e a literatura, como ele próprio dizia, continua a ser uma forma de ver melhor. Este artigo propõe-se, por isso, a olhar para trás com olhos de ver: para o livro, para os prémios e para o legado de um autor que nunca escreveu para agradar, mas sempre para despertar.

*A Intuição da Ilha, de Pilar del Río
**José Saramago - Da Cegueira à Lucidez, de António José Borges