
Historiadora da Arte, doutorada em Coimbra, e levando no currículo a direção de equipamentos como o Museu Grão Vaco (2001-2004) e o Museu Nacional de Arte Antiga (2004-2007), bem como passagens pelas estruturas de administração da Casa da Música e do CCB (2012-2015), Dalila Rodrigues saiu, há um ano, do cargo de diretora do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém, onde esteve cinco anos, para assumir a pasta da Cultura no governo de Luís Montenegro. A terminar um mandato encurtado pela moção de censura que determinou a queda do executivo ao fim de apenas um ano em funções, numa entrevista ao SAPO no Palácio Nacional da Ajuda, a ministra faz o retrato dos dias e partilha aquilo que é a sua visão da e para a Cultura, que acredita dever ser "participada, democrática e alargada a todo o território" em lugar de circunscrita ao eixo Lisboa-Porto.
Revela os bons resultados de medidas como o Acesso 52 e o Teatro 50% e assume que há que repensar outras, como o cheque-livro. Mas acima de tudo, defende que é preciso agilizar processos, tornando-os mais justos, e garantir que a cultura chega a todo o território sem fricções entre erudito e popular, património e arte contemporânea, e alargada a manifestações menos óbvias, como a preservação da memória de antigas práticas agrícolas ou até do património gastronómico. "A cultura não se pode partidarizar."
Sobre as tensões que resultaram em casos mediáticos, lamenta a "herança pesada" que recebeu, mas também elogia quem antes ocupou a pasta. Defende a manutenção do Palácio da Ajuda em complementaridade com a nova sede do governo, enquanto "cartão de apresentação do país" e garante que continuará a dar a sua contribuição para melhores políticas públicas de cultura, independentemente do lugar no qual venha a sentar-se. "Nunca fiz outra coisa ao longo da minha vida."
Como definiria “Cultura”?
Um meio essencial para pensar o mundo, para nos organizarmos e nos perspetivarmos enquanto habitantes deste planeta.
Há várias culturas, ou vários níveis de cultura, ou entende-a como peça única que reúne a generalidade do que faz parte da nossa identidade e património, quer numa perspetiva mais micro, local, quer numa visão mais abrangente e globalizada?
Cultura é uma espécie de palavra forra-tudo, que serve para nos reportarmos às mais distintas expressões do ser humano. Na minha ação governativa, assumo a cultura como uma área de serviço público que deve incluir a pluralidade, a participação alargada e deve inscrever princípios de abrangência geográfica, de auscultação e de democracia.
Dos palcos às bibliotecas, dos museus e monumentos à gastronomia, do artesanato às corridas de toiros: tudo o que faz parte da nossa identidade é também expressão cultural?
Gostava de estabelecer uma analogia entre cultura e natureza, porque é um binómio de cuja comparação resultam leituras muito oportunas. A primeira tem que ver com a biodiversidade e o equilíbrio ecossistémico: na natureza, temos de garantir a biodiversidade e o bom funcionamento dos ecossistemas, da mesma forma que na cultura temos de manter a pluralidade e o princípio de que não se pode esgotar recursos e os ecossistemas têm de funcionar em pleno e em equilíbrio. Mas há ainda um princípio fundamental de intercessão: não há, nem na natureza nem na cultura, realidades ausentes de pluralidade. As identidades constroem-se e reconstroem-se ao longo dos tempos de acordo com o princípio da intercessão.

De que forma?
Se olharmos ao longo da História, de Portugal e da cultura portuguesa, percebemos que somos o resultado de várias intercessões. Nos corredores do tempo, foram permanentes os contributos, as presenças, as invasões, as partilhas. Deste princípio resulta que a identidade cultural existe nos territórios e nas suas formas de expressão, mas também resulta da diversidade, dos vários contributos que ao longo dos séculos se foram acumulando e que fomos assimilando. Portanto, essa noção de que a realidade portuguesa corresponde a uma realidade imutável e impoluta, que circula à margem das transformações históricas e das várias intercessões que fomos estabelecendo com outros povos, é uma falácia. É mentira. É importante ter um pensamento claro sobre isto, bem como ter uma visão de transmissão cultural. É dever de todos os governantes garantir o princípio da transmissão cultural.
Assumo a cultura como uma área de serviço público que deve incluir a pluralidade, a participação alargada e deve inscrever princípios de abrangência geográfica, de auscultação e de democracia.
Transmissão cultural?
Nós recorremos à representação do tempo permanentemente. Não são raras as exposições que incluem uma linha do tempo onde os factos históricos antes, durante e depois dos conteúdos apresentados surgem, mas temos isso muito pouco presente nas políticas culturais. Transmitir legados na música, na dança, no texto escrito, na expressão verbal, nas coleções… e quando falo em coleções falo em todo o tipo de artefactos e objetos; não apenas de obras de arte. De modo geral, associamos as coleções a uma dimensão de obra de arte, mas isso não é aceitável. Ainda há pouco tempo tive conhecimento de uma coleção excecional ligada à atividade agrícola e pastoril do Alentejo, de uma pessoa que dedicou a sua vida à recoleção e agora quis partilhar essa “Arte Pastoril do Alentejo”. E é mais do que legítima a interrogação sobre o uso desta categoria de arte, mas não tenho a menor dúvida de que é uma coleção excecional. O método da indagação, da elaboração de perguntas e procura de respostas é essencial às boas práticas culturais. Ter um pensamento estruturado, políticas culturais estruturadas nesse pensamento e medidas que as tornem consequentes são deveres de um governante.
Valoriza mais o património do que a arte contemporânea?
O passado e o presente não estão e oposição, fazem parte de um continuum.
Não se deixa cair os Jerónimos para se apostar no que há de novo.
Exato, e nesse sentido a reforma do anterior governo na área do património colocou em risco todo o tipo de património, do litoral à fronteira com Espanha. Das fortificações às ermidas, catedrais… Porque extinguiu as Direções Regionais de Cultura e o Ministério da Cultura (MC) ficou totalmente desprovido das suas estruturas de representação – como de resto aconteceu com a agricultura.
Mas foram criadas novas estruturas.
Para repor as funções de inventariação, diagnóstico e intervenção foi criado o Património Cultural, Instituto Público (IP), mas que ficou totalmente desprovido de meios; e os espartilhos jurídico-administrativos são impeditivos de uma ação imediata no terreno. Resultado das tempestades de março, por exemplo, a Muralha de Mértola sofreu grandes danos – está agora a ser intervencionada. Este Património Cultural, IP tem a gestão do PRR, portanto os 319 milhões de euros que têm de ser executados até final de março de 2026 constituem uma frente de ação que canaliza toda a atenção e energias (também do meu gabinete, justamente). E não foi possível reverter esta reforma para garantir a execução do PRR. Mas essa reversão está no horizonte, faz parte das políticas culturais, em cumprimento do Programa do Governo.
Mas há risco de não se cumprir as reformas do PRR?
Há sempre risco, no sentido em que os concursos podem ficar desertos. Não há qualquer risco no sentido das diligências tomadas pelo Património Cultural – e tenho de fazer um grande elogio ao dr. João Soalheiro e à sua equipa, à Ana Catarina Sousa e ao Ângelo Silveira, que não têm tido descanso desde que iniciámos funções.

Voltando um pouco atrás, faz falta cultura às nossas escolas? Devia mostrar-se mais e levar até os mais pequenos a ter esse contacto direto, levar-se os miúdos a um museu, ao teatro, a concertos, etc. com regularidade… enfim, criar-se atividades que os estimulem desde pequenos a ganhar sensibilidade artística e estimular a criatividade?
Num âmbito governativo, educação e cultura não existem uma sem a outra, são tão importantes as políticas públicas de uma quanto da outra.
Não é o que temos visto.
Há alguns exemplos que é importante eleger como referentes. O Plano Nacional das Artes (PNA) –, que é partilhado entre os ministérios da Educação e da Cultura, desde 2019, é um excelente exemplo. Deve ampliar-se a escala, reforçar-se meios – não tanto orçamentais, mas agilizando procedimentos para que a execução da dotação orçamental partilhada entre as pastas se traduza em eficácia –, mas o PNA é um excelente exemplo de um recurso partilhado. Há muito a fazer, sobretudo do lado da cultura, porque dispomos de equipamentos em todas as áreas – do cinema ao teatro, das coleções museológicas às artes e à dança – e não os disponibilizamos em contexto escolar com a abertura e generosidade que as políticas públicas devem considerar.
De que forma?
Veja o Acesso 52 ou o Teatro 50%.
Duas medidas que fazem parte do seu legado.
Se me permite essa ambição de deixar legado, já que defini um pensamento e políticas culturais de carácter estruturante. É fundamental garantir a gratuitidade no acesso, mas também o é garantir que a escola está disponível e aberta à oferta cultural e à educação em contexto não formal, não na sala de aula mas na prática.
Pela Europa fora vemos isso: miúdos a visitar os museus, sentados no chão a experimentar a arte… cá não existe nada parecido. É por falta de adaptação?
Os serviços educativos das instituições culturais estão cada vez mais trabalhados no sentido da inclusão e orientados para uma educação informal, mas a minha experiência nos últimos 30 anos permite-me referir, por exemplo, que a indisponibilidade de transporte por parte das autarquias constitui um limite a essa intercessão entre educação e cultura.
É fundamental garantir a gratuitidade no acesso, mas também o é garantir que a escola está disponível e aberta à oferta cultural e à educação em contexto não formal.
É a logística que falha?
Enquanto diretora do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em 2005, senti uma quebra muito significativa em termos de públicos escolares. É um museu nacional, visitado por muitos municípios, e era uma experiência muito enriquecedora para os miúdos virem a Lisboa verem estes equipamentos, os museus, os Jerónimos… Mostrar o património, permitir-lhes ter ali um momento de teatro de uma obra literária como o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, depois seguirem para um museu de arte contemporânea: isto é uma experiência marcante. Pode até ser determinante. Mas essas experiências deixaram de acontecer em grande parte porque deixou de haver transporte garantido.
Faria sentido ativar junto dos municípios essas valências, dar-se mais “poder cultural” às autarquias justamente até para fazerem melhor esse planeamento?
E assim nos aproximamos de um princípio estruturante da minha governação, o da abrangência geográfica. Não faz sentido que a cultura não estabeleça parcerias com todos os municípios portugueses…
Todos?
Todos, os 308, incluindo Regiões Autónomas. Se há o desejo de praticar uma conceção democrática e participada de cultura, tem de ser através dos 308 municípios, tendo os presidentes de câmara como parceiros e no terreno as equipas terem como aliado permanente os vereadores da cultura.
A indisponibilidade de transporte por parte das autarquias constitui um limite a uma maior intercessão entre educação e cultura.
E sentiu abertura das autarquias para isso?
Total. Era suposto que eu tivesse realizado reuniões com as 22 Comunidades Intermunicipais (CIM) — tive oportunidade de fazer apenas três —, mas existe dotação orçamental no OE2025 para que essa parceria comece a dar resultados através das seis medidas aprovadas no Conselho de Ministros de 9 de outubro. Infelizmente, não vai ser executado em pleno porque é necessário parecer da Associação Nacional de Municípios para que se estabeleça o contrato-programa entre o MC e os municípios, e em gestão não podemos fazê-lo.
Reuniram-se com que CIM?
O Cávado, em Terras do Bouro, o Médio Tejo, no Sardoal, e o Alentejo Litoral, em Sines. Curiosamente, as três reuniões ocorreram por razões diferentes. Fui a Terras de Bouro porque é um dos cinco municípios que não dispõem de biblioteca – e foi um objetivo assumido por mim acabar com essa situação. A biblioteca é a instância cultural que nos permite chegar a todo o país. Agir em todo o país é um lema que elegi como princípio estruturante das políticas culturais e nesse sentido designei as bibliotecas unidades culturais de território, organizando-as e dotando-as de meios para uma oferta cultural diversificada. Há que dizer que a maioria dos municípios tem nas bibliotecas um meio de ativação de programação cultural muitíssimo interessante – não pretendo substituir-me a isso, não há aqui nenhuma arrogância. O que queremos é associar-nos aos municípios para reforçar a oferta cultural, mediando e comparticipando com 50% em termos de investimento.
E as outras visitas?
Foram reuniões extraordinárias, porque os presidentes estão sempre unidos em torno do desígnio de valorizar os seus territórios. Não há divisões político-partidárias e se há alguma competição é para estimular sinergias. O Sardoal teve a inauguração de biblioteca pós-recuperação e pela minha ligação pessoal (eu estudo as pinturas da terra, dei aulas e sou uma espécie de filha da terra) fui convidada e organizámos essa visita também. E fui a Sines porque os programas celebrativos de Camões, de Vasco da Gama e de Carlos Paredes têm abrangência territorial – eles surgem no meu gabinete como pensamento estrutural e são concretizados pelo país, por isso fizemos as conferências dos 500 anos de Vasco da Gama em Lisboa, em Sines e na Vidigueira, seguindo o percurso dessa figura histórica.
Agir em todo o país é um lema que elegi como princípio estruturante das políticas culturais.
E a recetividade foi boa?
A recetividade é total. Essas reuniões traduzem-se numa grande aprendizagem para mim e para as equipas, porque estabelece-se uma relação de cumplicidade e compromisso que acredito que dará os melhores resultados. Eu não terei tempo de concretizar este objetivo, mas acredito que o programa terá continuidade.
"Dos procedimentos concursais da DGArtes resulta a exclusão de artistas e de estruturas que devem ser apoiadas"

A Cultura continua a ser o primo pobre no Orçamento do Estado (OE), mas tem vindo a ganhar volume. Em 2025, foram 600 milhões (+25% do que o valor executado em 2024 e +18% relativamente ao bolo do ano anterior), mas dois terços disto foram para despesa corrente — e metade desse valor para transferências e subsídios. Há uma cultura de subsidiar os “do costume”, sem olhar ao valor dos projetos e à renovação?
O princípio de que é sempre possível fazer melhor deve existir em qualquer área governativa e da atividade humana. Há muito a fazer na cultura. Os procedimentos através dos quais se apoia estruturas e artistas têm de ser verificados e melhorados. Os procedimentos concursais através de plataformas cada vez mais complexas e infernizantes para quem quer desenvolver a sua atividade devem ser substituídos por formas mais ágeis, que garantam critérios mais abrangentes e justos.
Os critérios não são justos?
Neste momento, dos procedimentos concursais da DGArtes resulta a exclusão de artistas e de estruturas que devem ser apoiadas.
Mas não há dinheiro para tudo. Havia uma promessa de aumentar o orçamento da Cultura em 50% até ao final da legislatura…
E houve aumento. A minha primeira preocupação foi estabilizar todo o setor e os setores específicos, ou seja, não tomar decisões que pudessem traduzir-se na falta de estabilidade ao trabalho que está a ser desenvolvido. Sou consciente, sou uma profissional desta área e tive tutelas diretas e indiretas como diretora de museus, administradora do CCB, etc. e sei muito bem o que representa a chegada de um novo executivo e a indefinição que se pode traduzir em termos de programação e de compromissos assumidos. Portanto, o primeiro sinal que dei aos diretores-gerais e presidentes das 12 entidades (excluindo fundações que têm subvenção pública) que estão na estrutura orgânica do MC foi de estabilidade.
Os apoios aumentaram?
Sim, aumentaram. Nos apoios a projetos, passámos de 14,2 milhões para 14,3 milhões de euros em 2025. Nos apoios à rede de teatros e cineteatros portugueses, passámos de 6,75 milhões em execução agora para 8 milhões em 2026. E praticamente duplicámos as bolsas para criação literária, de 24 para 42, com abrangência geográfica e simplificação, sem princípios de exclusividade e atribuindo duas bolsas por cada área e NUT (Nomenclatura das Unidades Territoriais).
Nós aumentámos os apoios: nos projetos, passámos de 14,2 milhões para 14,3 milhões de euros, em 2025. Nos apoios à rede de teatros e cineteatros portugueses, passámos de 6,75 milhões em execução para 8 milhões, em 2026, e praticamente duplicámos as bolsas para criação literária, de 24 para 42.
Mencionou as fundações. O mecenato devia ser mais envolvido e em coordenação com o MC aumentar a proposta cultural?
Há dois tipos de medidas aprovadas no Conselho de Ministros: com os municípios, de que já falámos, tendo a biblioteca como unidade cultural de território, e os contratos-programa com as fundações. As fundações que recebem subvenção pública mais significativa são o CCB, com 10,5 milhões, a Casa da Música com 10 milhões, Serralves, com 6,9 milhões, e a Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, com 450 mil euros. A primeira constatação é de âmbito geográfico: só estamos a falar de Lisboa e Porto. Guimarães, por exemplo, que teve o Centro Internacional de Arte José de Guimarães como equipamento resultante da Capital Europeia da Cultura, não tem apoio do MC, o que é uma enorme injustiça. Estamos a falar de subvenções públicas entregues todos os anos nessas quantias, sem qualquer compromisso ou garantia de retorno e sem qualquer articulação em termos de políticas públicas, de serviço público.
É um cheque em branco no que respeita a resultados.
Enquanto dirigi instituições públicas e desempenhei cargos nessas fundações – o CCB e a Casa da Música, onde tive funções concretas – sempre considerei que era preciso rever estes critérios e princípios. E assumi esse grande desafio.
E como foi recebido?
Num primeiro momento, presencialmente, qualquer das fundações entrou prontamente em concordância, mas até agora só o CCB, com a nova direção, respondeu.
O Centro Internacional de Arte José de Guimarães não tem apoio do MC, o que é uma enorme injustiça. As subvenções públicas são entregues todos os anos privilegiando o eixo Lisboa-Porto, sem qualquer compromisso ou garantia de retorno e sem articulação em termos de políticas públicas, de serviço público.
Faria então sentido que os fundos estivessem pelo menos em parte vocacionados para resultados? Isso não resultaria numa certa comercialização da cultura?
O que pedi concretamente foi que enviassem uma minuta de contrato-programa em que estas questões da abrangência geográfica e do compromisso com o serviço cultural público tivesse contrapartida nessa subvenção. Por exemplo: há inúmeras bandas filarmónicas no território nacional e elas assumem uma enorme importância, em muitas comunidades são o último reduto, como as bibliotecas – e por isso as valorizo tanto. Se os diretores dessas bandas tiverem oportunidade de realizar uma residência artística de uma semana ou duas na Casa da Música, imagine o que significa em termos de experiência. E não exijo às fundações qualquer tipo de investimento, faz parte da dotação orçamental o encargo com essas residências artísticas – e que são extensíveis à CPLP.
Mas porque é que isso não acontece?
Porque nunca houve uma ministra que tivesse essa iniciativa.
E agora que a teve?
Ainda não aconteceu, mas também ainda não foi realizada qualquer transferência até ao momento.
Mas acredita que vai acontecer?
Estou convencida que qualquer destas fundações, uma vez que não fiz imposições nem há gastos complementares – trata-se apenas de alargar o serviço público –, tem o dever de dar esse retorno.
Levar a cultura a todo o território foi um desígnio seu. Tem números que permitam perceber o impacto do Acesso 52?
(n.a. - medida que dá a todos os residentes em Portugal a possibilidade de visitarem gratuitamente 37 museus, monumentos e palácios, 52 dias por ano, em qualquer dia da semana que escolham)
O Acesso 52 vai traduzir-se em 1 milhão de visitantes, ou até mais, quando concluído um ano de implementação. Neste momento vamos em pouco mais de oito meses e temos 634.603 visitas gratuitas concretizadas. E posso dizer também que o Teatro 50% (n.a. - os jovens até aos 25 anos pagam apenas metade do bilhete nos teatros tutelados pelo MC) arrancou no início do ano e em apenas dois teatros, o São João e o Camões (os restantes estão em reabilitação, em cumprimento do PRR) houve respetivamente 812 bilhetes e 657 bilhetes usados. O que é bastante relevante se pensarmos que a medida é limitada aos 25 anos. Fiquei entusiasmada porque justifica a minha convicção de que faria sentido alargar esta medida a outras faixas etárias.
E os efeitos do cheque-livro e das bibliotecas como polos culturais são quantificáveis?
Das bibliotecas não, porque não chegou a concretizar-se pelo que expliquei. Mas é sempre possível dotar a DGLab, sediada na Torre do Tombo, dos meios para que as medidas aprovadas em Conselho de Ministros tenham efeitos práticos, por isso está salvaguardada a execução destas medidas para que chegue a todo o país e se acabe com os desertos culturais. No que respeita aos cheques-livro, foram emitidos 41.422 e só 28.908 foram utilizados, o que nos obriga a colocar interrogações. Fiz uma reunião com a APEL, nossa parceira, e estamos a fazer um trabalho de reflexão conjunto. Porque mesmo o número de emissões é baixo para o universo aplicável de jovens de 18 anos: são 220 mil potenciais utilizadores da medida e menos de um quinto foram emitidos.
Em pouco mais de oito meses, houve 634.603 visitas gratuitas concretizadas a museus, ao abrigo do Acesso 52. E o Teatro 50%, que arrancou no início do ano nos teatros São João e Camões, soma 1469 bilhetes usados. O cheque-livro tem de ser melhorado: num universo de 220 mil jovens de 18 anos, potenciais utilizadores da medida, foram emitidos menos de um quinto de cheques-livro e utilizados menos de 29 mil.
E que razões encontra para isso?
Primeiro, 20 euros é um valor insignificante, não estimula a curiosidade e o interesse. Depois, lamentavelmente, nem sequer existem livrarias em muitos locais. Numa região fronteiriça, por exemplo, muitas vezes gasta-se o triplo desse valor para chegar a uma livraria onde se possa emitir e descontar o cheque-livro.
Foi uma medida mal pensada?
O princípio é bom, mas há muito a melhorar. Aconteceu o mesmo com o pass culture, em França, está a concluir-se que as assimetrias existentes são agudizadas em vez de resolvidas, com a entrega de passes para acesso cultural. Democratizar a cultura é um princípio fundamental deste governo e por isso o fizemos com toda a generosidade e com aplauso do primeiro-ministro, que é um grande defensor destas políticas e refere sempre nas suas intervenções públicas a importância de aumentar a participação cultural e garantir o acesso de todos os cidadãos. Até por razões de criatividade.
"É ao país que quero chegar, não ser popular junto da comunicação social"

Poucos acreditavam que este governo ficasse por quatro anos, mas acabou por cair ao fim de apenas um. O que é que gostava de ter feito e não conseguiu por falta de tempo?
Agir em todo o país, ou seja, estabelecer os contratos-programa com os municípios e com as fundações e garantir que esta conceção democrática e participada da cultura está assegurada como legado.
E que medida ou mudança conseguida a deixa mais orgulhosa de levar a sua assinatura?
A defesa do pensamento crítico.
Em que é que isso se traduz?
É fundamental que as medidas não tenham caráter acidental ou casuístico, mas que tenham ponderação, que tenham longa duração e haja sentido de continuidade e de legado. Talvez por trabalhar na área do património e por valorizar tanto este princípio da transmissão cultural. Assinalo também outra visão fundamental: nós usamos categorias que já não servem as práticas culturais – foi por onde começámos a entrevista: a noção de erudito e popular, de cultura de esquerda e de direita. A cultura não se pode partidarizar. As práticas culturais que decorrem do mundo rural em desaparecimento – e este mundo tem sofrido transformações profundas, apesar de continuar a haver comunidades rurais – requerem um sentido de preservação e apropriação com sentido também contemporâneo. Esse legado de valorização de práticas culturais ligadas à noção do “popular” interessa-me imensamente. Talvez através do Museu de Arte Popular, cujo fim foi decretado em 2006 pela então ministra Isabel Pires de Lima e de cujo incumprimento resultou uma boa solução, que é termos o museu ainda em condições de ser repensado e assumido verdadeiramente como Museu de Arte Popular.
Democratizar a cultura é um princípio fundamental deste governo. É preciso acabar com esta dimensão, no mínimo penosa, entre erudito e popular, associada a uma dimensão judiciosa. Como se no erudito estivesse o valor e no popular a condescendência.
Mas também me interessa muito o património gastronómico, que tem como tutela a Agricultura mas tem também património cultural: as confrarias, que defendem o seu produto mas não têm natureza de preservação. Interessa-me garantir e estimular os princípios da intervenção, do mapeamento, da preservação das práticas culturais ligadas às confrarias. E acabar com esta dimensão, no mínimo penosa, entre erudito e popular, associada a uma dimensão judiciosa. Como se no erudito estivesse o valor e no popular a condescendência. Não é assim. Entendo essas manifestações culturais disseminadas pelo território – folclore, grupos de cantares, bandas filarmónicas, produção de objetos e artefactos… até à preservação de fenómenos como a transumância – pelo valor que têm e não é com a classificação como Património que se consegue preservar. O reconhecimento é importante, mas tem de haver práticas de investimento muito claras para que essas manifestações culturais se preservem, se mantenham e se reapropriem com sentido contemporâneo.
Foi isso que a fez dar passos para a preservação da língua Mirandesa?
Sem dúvida. Há dias, reuni-me com os 37 diretores de museus, monumentos e palácios, porque acabou o procedimento concursal, e disponibilizei-me para a auscultação e para um trabalho comprometido com este princípio de agir em todo o país. Porque estamos a falar de equipamentos que têm essa dispersão: do Museu Terra de Miranda e do Museu Abade de Baçal, em Bragança, ao Forte de Sagres ou aos museus de Évora, de Lamego, etc. E no final da reunião, sugeri um encontro em Terra de Miranda, para que se inicie um novo ciclo da cultura em Portugal que pense em todo o território e não no eixo Lisboa-Porto.
Seria fundamental que nos descentrássemos de pessoas e de casos isolados e que pensássemos o país em função de políticas e visões territoriais alargadas.

Que Cultura encontrou quando assumiu a pasta? O que mais lhe agradou e o que mais a surpreendeu negativamente no trabalho feito pelos que a precederam?
A herança foi pesada no que respeita ao património... também a Évora Capital Europeia da Cultura, ao cheque-livro, à estrutura orgânica do MC. Cada ministro adicionou, dividiu, distribuiu, mas não pensou profundamente a estrutura orgânica e territorial do Ministério da Cultura. E quando recebi o honroso convite para assumir estas funções, o sr. primeiro-ministro permitiu-me que tivesse uma participação ativa na elaboração do Programa do Governo, desde que não excluísse uma única ideia ou princípio do Programa da AD com que tinha ganhado as eleições. Uma refundação da estrutura orgânica do MC foi então introduzida; e penso que esse trabalho deve ser feito a longo prazo.
Quanto ao que mais me agradou, o Plano Nacional das Artes, lançado há cinco anos pela ministra Graça Fonseca.
O seu mandato ficou marcado por uma série de casos mediáticos. Foi só má imprensa ou falta de contacto com os media?
O ex-ministro da Cultura é comentador político e tem acesso a todos os meios de comunicação social. Eu não tenho uma ação governativa marcada por agendas mediáticas. É ao país que quero chegar e não ser popular junto da comunicação social.
Disse ao JN na semana passada que fez apenas duas exonerações: a do presidente do Património Cultural, IP, "para resgatar o PRR do atraso" – a execução acelerou neste ano, de 15,7% para 29,1% – e a da presidente do CCB, Francisca Carneiro Fernandes, que motivou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Mas houve muito mais mexidas nas diferentes estruturas. Não foram suscitadas por si?
Não houve muitas. Diogo Ramada Curto foi nomeado na sequência da aposentação da anterior diretora da Biblioteca Nacional. O diretor-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLab), Luís Filipe Santos, foi nomeado na sequência da aposentação do anterior diretor, ambos porque chegaram ao termo da idade. A dr.ª Inês Cordeiro já não se encontrava em funções na Biblioteca Nacional e Silvestre Lacerda também pediu a aposentação da Torre do Tombo em dezembro. No Teatro D. Maria e no OPART foi toda a gente reconduzida.
E o que estava errado na “orientação” do CCB? E o que é que Nuno Vassallo e Silva já mudou?
Já abriu uma candidatura a projetos – disse-me esta manhã que já recebeu uma centena de propostas –, à semelhança do que fez o dr. Vasco Graça Moura e eu própria, uma candidatura aberta. O CCB deve, em virtude da sua dotação orçamental, com uma subvenção pública de 10,5 milhões de euros, e da sua dimensão estatutária, ter uma administração nomeada pelo governo, é competência do executivo fazê-la. Não vejo razão porque não o devesse ter feito, orientando o CCB não para uma visão sectorial mas para uma de âmbito nacional. O CCB é um equipamento do país, não deve estar tomado por facilidades de acesso ao financiamento.
O CCB é um equipamento do país, não deve estar tomado por facilidades de acesso ao financiamento.
O caso de Francisca Fernandes Carneiro foi motivado pela nomeação de Aida Tavares, que continua no CCB…
Mas eu não faço ingerências na gestão das instituições. Não obstante artigos de opinião que disso me acusam, é uma falsidade. O dr. Vassalo e Silva e a sua administração saberão conduzir o CCB para o que deve ser a sua posição em termos de cumprimento das políticas culturais públicas e tendo consciência de que tem 10,5 milhões do Estado. Tem de ter uma perspetiva de serviço público e não uma visão privada e sectorial da cultura. Seria fundamental que nos descentrássemos de pessoas e de casos isolados e que pensássemos o país em função de políticas e visões territoriais alargadas.
A localização do MC foi outro assunto que deu muito que falar. Quando praticamente todo o governo foi centralizado no edifício da CGD, porque é que insistiu tanto em ficar no Palácio da Ajuda?
É uma ficção narrativa que provoca vontade de rir no meu gabinete.
O Palácio Nacional da Ajuda funciona como um cartão de apresentação do país.
Não queria ficar aqui?
Eu preferia ficar, evidentemente. Tanto que nos encontramos aqui. Essa foi uma decisão tomada em Conselho de Ministros e num primeiro momento decidiu-se manter o Palácio Nacional da Ajuda por aqui se encontrarem também as estruturas que têm a missão de cumprimento do PRR, designadamente o Património Cultural, IP e a Museus e Monumentos de Portugal, o que era facilitador de uma melhor articulação com o gabinete, que chamou a si essa responsabilidade direta. Mas o Palácio é um ícone do MC, que está aqui sediado há muito, oferece excelentes condições de trabalho e permite receber homólogos, corpo diplomático... já tive o gosto de aqui receber muitos ministros da Cultura, delegações internacionais, e faço-o com mais sentido de Estado aqui porque é um palácio dotado de obras de arte e de espaços arquitetónicos com esta qualidade histórica e artística. Funciona como um cartão de apresentação do país, não obstante essas visitas serem complementadas com idas a outras instituições e equipamentos culturais. De resto, todos os ministros reconhecem a importância do Palácio da Ajuda e que seja um complemento às instalações do Campus.
Se a AD vencer as próximas legislativas, aceitará ser novamente ministra?
Creio que poderei contribuir com a minha visão para as melhores políticas públicas de cultura seja qual for o meu cargo. Nunca fiz outra coisa ao longo da minha vida.
Poderei contribuir com a minha visão para as melhores políticas públicas de cultura seja qual for o meu cargo.
Mas não está nas listas — e há 11 ministros que são até cabeças-de-lista. Porquê?
Eu sou independente.
E se não voltar ao governo, já sabe o que vai fazer a seguir?
A prática da História de Arte permite-me ensinar, investigar e escrever. Foi o que sempre fiz e é o que continuarei a fazer.