No nosso lar vive o nosso grupo de confiança. Pode ser maior ou mais pequeno, mais ou menos próximo, com mais ou menos conflitos, mas são pessoas em quem confiamos para partilhar o espaço onde dormimos, onde comemos, onde descansamos, onde estamos mais indefesos. São as pessoas que apoiamos na saúde e na doença, em relação a quem temos o compromisso de ajudar em caso de necessidade. Até podemos, tendo essa possibilidade, ajudar pessoas fora do nosso lar, mas as pessoas com quem partilhamos o lar terão sempre a prioridade do nosso tempo e recursos. São pessoas de confiança. Quando deixam de ser de confiança, o lar pode partir-se ou mesmo deixar de existir.

Esse lar pode ser visitado por outros familiares ou amigos próximos que podem até pernoitar alguns dias, beneficiando temporariamente de níveis de intimidade próximos aos que têm os membros do lar. Alguns podem, eventualmente, passar até a fazer parte do mesmo lar.

Temos também amigos que visitam sem pernoitar. Vêm jantar, conversar, participar em festas. Abrimos-lhes as portas sem hesitar, mesmo que não consideremos a hipótese de poderem pernoitar.

Depois há aqueles a quem abrimos as portas não sendo amigos porque vêm trabalhar, arranjar algo avariado, limpar ou fazer manutenção. Com boas referências até os podemos deixar sozinhos no nosso lar a fazer o seu trabalho, mas essa autorização extingue-se quando o trabalho fica feito. Esses até podem tornar-se amigos mais tarde, mas são, à partida, visitas temporárias.

Depois temos aqueles que ficam à entrada, que vêm entregar algo ou tentar vender alguma coisa. Atendemo-los à porta com mais ou menos desconfiança, mas não chegam a entrar, nem eles querem, porque tudo o que desejam é tratar do seu negócio rapidamente e seguirem a sua vida.

Há outros a quem nem sequer abrimos a porta, tal a desconfiança em relação às suas intenções.

Em situações muito excecionais podemos quebrar todas estas regras. Se na rua houver um tumulto, uma inundação, algo que ameace a integridade física ou a vida de um completo estranho, sentimo-nos moralmente obrigados a deixá-lo entrar, até a pernoitar, para proteger a sua vida, especialmente os mais frágeis. Alguns podem tornar-se amigos, mas a amizade não é pré-condição para abrirmos a porta, apenas a obrigação moral de os proteger de um risco de vida. A esses só se fecha a porta se tivermos a convicção segura de que abrir a porta poderá ser um risco de vida para nós.

Cada uma destas pessoas é um ser humano com os mesmos direitos e a mesma dignidade de qualquer um dos outros. Todos têm direito a um lar, embora não, necessariamente, ao nosso lar. A diferença de tratamento que recebem no nosso lar depende da sua relação connosco e é isso que determina os diferentes direitos de acesso, e não os seus direitos universais enquanto seres humanos. São regras que se restringem ao nosso lar, à nossa intimidade, à partilha do nosso espaço comum.

Todos já fomos visitas de um lar e recebemos visitas no nosso. Alguns de nós até já mudaram de lar a certa altura na vida. Recebemos como gostamos de ser recebidos e respeitamos como gostamos de ser respeitados.

Haverá certamente eremitas que fecham a porta a toda a gente. Esses ficarão gradualmente mais isolados, mais pobres, num lar decadente e mal mantido. Um dia morrerão sozinhos sem ninguém se aperceber, e o seu lar acabará ocupado ou leiloado à melhor oferta, talvez até acabando nas mãos de um daqueles a quem se fechava a porta.

Outros certamente bem-intencionados, mas ingénuos, deixam sempre a porta aberta. Esses acabarão com os armários vazios de comida, ver-se-ão obrigados a fechar a porta do quarto à chave de cada vez que forem dormir e, um dia, talvez se apercebam de que afinal já não têm verdadeiramente um lar.

Entre estes dois casos, há um amplo leque de nuances onde estão as pessoas com quem vale a pena partilhar o lar e definir, em conjunto, regras que satisfaçam todos, sem choques nem rigidez, sem virtuosismo ingénuo nem ódio gratuito.

Carlos Guimarães Pinto escreve no SAPO quinzenalmente, sempre à terça-feira