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Os lucros de “porta aberta” da banca e o sofrimento das famílias com créditos a juros variáveis

A questão que se impõe em Portugal é esta: quem paga o preço de tudo isto?

O ano de 2023 ficará marcado na história do setor bancário em Portugal, não só pelos lucros extraordinários mas também pelo contraste gritante entre o enriquecimento da banca e o empobrecimento das famílias com créditos hipotecários indexados a taxas de juro variáveis. Os bancos nacionais registaram lucros recorde de 5,6 mil milhões de euros, o maior valor de que há registo na história recente do setor. Foram mais de 15 milhões de euros de lucro por dia, um número que parece saído de um conto de ficção, mas que é bem real.

Este cenário ganha contornos ainda mais chocantes quando comparado com a situação das famílias portuguesas, muitas das quais em situações de enorme fragilidade financeira. A DECO - Defesa do Consumidor refere que recebe entre 10 e 15 pedidos de ajuda por dia relacionados com crédito à habitação. Entre janeiro e setembro de 2023, somaram-se mais de 20 mil pedidos de apoio, na sua maioria vindos de famílias que, mesmo mantendo o emprego e o rendimento, passaram a não conseguir honrar compromissos, nomeadamente relacionados com o peso das prestações mensais dos seus créditos hipotecários.

Estas dificuldades não surgem do acaso. São fruto de uma conjugação de fatores em que os dez aumentos das taxas de juro em 15 meses têm um papel preponderante. As famílias com créditos hipotecários indexados a juros variáveis viram os seus rendimentos, já de si muito limitados, serem “devorados” por taxas de juro exorbitantes que alimentaram diretamente os lucros colossais dos bancos. Com a escala e velocidade a que tudo isto ocorreu, o processo é, no mínimo, altamente controverso do ponto de vista moral.

Paralelamente, assistimos recentemente  a um outro desenvolvimento que envolve o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário. Este imposto adicional foi criado para financiar a Segurança Social durante a pandemia de covid-19, num momento em que o Estado português enfrentava desafios financeiros sem precedentes. Contudo, a banca tem obtido sucessivas vitórias na justiça que colocam este imposto em risco de extinção. Refere o ECO que, com mais um acórdão favorável do Tribunal Constitucional, o Adicional de Solidariedade poderá ter os seus dias contados.

Não se pode ignorar o peso que este imposto tem na sustentabilidade do nosso sistema de Segurança Social, especialmente após uma crise pandémica que forçou o Estado a expandir o apoio social e a implementar soluções como o lay-off. Mas, à semelhança do que já vimos em outros países, como Itália, onde o governo tentou implementar um imposto sobre os lucros extraordinários da banca, a dificuldade de concretização de medidas como estas é máxima. A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, foi célere a condenar a tentativa do governo italiano de taxar a banca, alertando para os riscos que isso traria para a concessão de crédito e a estabilidade financeira. O governo de Meloni foi obrigado a recuar, suavizando a proposta até a transformar numa medida praticamente insignificante.

A questão que se impõe em Portugal é esta: quem paga o preço de tudo isto? Sobretudo, as famílias portuguesas com créditos hipotecários indexados a juros variáveis, cuja qualidade de vida se deteriora a olhos vistos. São centenas de euros a sair todos os meses dos parcos orçamentos familiares, aparentemente sem qualquer retorno palpável, senão os famigerados lucros de “porta aberta" dos bancos.

Por outro lado, os lucros recorde registados pela banca resultaram igualmente da ampliação da margem financeira dos bancos. A lógica seguida pareceu ser simples: aumentar os juros praticados no crédito às famílias e empresas em consonância com as taxas de juro do BCE, mas sem tocar nos juros associados aos depósitos. Resultado: aumento da margem líquida e dos lucros dos bancos.

Os bancos deveriam ter sido advertidos pelo BCE. Se também tivessem aumentado os juros associados aos depósitos desde o início, teriam estimulado a poupança. E a poupança é um instrumento fundamental no combate a surtos inflacionários. Não foi esta a opção dos bancos.

É verdade que qualquer imposto mais “social” sobre o setor bancário pode ter consequências económicas. Mas não podemos deixar de questionar: até que ponto é aceitável que o sofrimento das famílias sirva para aumentar, a um ritmo nunca antes visto, as contas da banca?

Os bancos não podem deixar de ser chamados à responsabilidade quando beneficiam de conjunturas extraordinariamente prejudiciais para as famílias. A não ser que se queira continuar a viver num país onde os lucros da banca são intocáveis e as famílias com créditos hipotecários indexados a juros variáveis pagam praticamente sozinhas a crise com a deterioração da sua dignidade e bem-estar.

Economista e professor universitário

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