Vivemos num tempo onde o horror perdeu o peso. Onde tudo é ruído. Vemos um vídeo de um massacre, depois vemos uma receita de bolo. Alguém morre espancado na rua e há quem continue a filmar como se estivesse num concerto. A violência não choca, apenas entretém.
A dor dos outros deixou de ser assunto, passou a ser conteúdo. A empatia esvaziou-se. As redes sociais misturam cadáveres com tutoriais de maquilhagem. Um bombardeamento surge entre um unboxing de telemóveis e uma dança viral. A sequência é absurda e ainda assim, habitual. Um grito de desespero, seguido de um “outfit do dia”. Vidas despedaçadas lado a lado com "o que comprei em saldos". E ninguém se escandaliza. Pior: habituámo-nos.

Quando é que passámos a normalizar o condenável?

Assistimos, impávidos, ao genocídio em Gaza. São crianças, famílias inteiras, vidas arrancadas por uma lógica de guerra que não se justifica, mas que continua a ser financiada, legitimada e, sobretudo, ignorada. Há vídeos. Há testemunhos. Há sangue real. E ainda assim, reagimos como se fosse ficção. Ou pior: como se não fosse nada connosco, como se estivesse demasiado longe para importar. Como se não estivéssemos, em pleno século XXI, a assistir à repetição da História em direto no ecrã da televisão, no feed do telemóvel, entre um anúncio e outro.

Enquanto Israel transforma a fome em arma de guerra — impedindo sistematicamente a entrada de ajuda humanitária e, por vezes, utilizando a que autoriza como isco para bombardeamentos — o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu grava vídeos com youtubers, a falar das suas cadeias de fast food preferidas. O contraste é grotesco. Mas não choca. Passamos o dedo no ecrã e seguimos para o próximo vídeo. Para a próxima distração. Para longe.

Em Gaza, a população civil está encurralada entre duas violências: a ocupação implacável e um grupo extremista que, não raras vezes, se esconde atrás de inocentes, usando-os como escudo humano. O Hamas, além de perpetuar o conflito, compromete a segurança do seu próprio povo e isso não pode ser ignorado. Mas nada disso justifica o massacre indiscriminado de civis. Nada justifica a fome como arma. Nada justifica a punição coletiva.

Em Portugal, o embaixador de Israel declarou, em plena televisão nacional, que não há fome em Gaza. Segundo ele, trata-se de uma "fabricação dos media" e de "propaganda do Hamas". As crianças visivelmente esqueléticas e desnutridas que surgem em vídeos e relatórios "já eram doentes antes”, diz ele. A negação do óbvio, transmitida em direto e sem consequências.

Já nem dentro de Israel há consenso. Organizações humanitárias israelitas, como a B’Tselem, têm denunciado abertamente os crimes de guerra cometidos pelo próprio governo, chamando-lhes o que são: atos de punição coletiva, limpeza étnica e genocídio. Vergonhosamente, grande parte do mundo não o faz.

Mesmo com todos estes dados, todas estas vozes, todas estas imagens o mundo permanece apático. Estimam-se mais de 60 mil mortos. Repito: mais de 60 mil mortos, sendo a maioria mulheres e crianças. Corpos despedaçados. Famílias inteiras apagadas. A dor é documentada, relatada, transmitida ao minuto, mas tornou-se paisagem de fundo. Um ruído persistente que aprendemos a ignorar.

A empatia já não morre por excesso de dor. Morre por excesso de distração. Por excesso de neutralidade. Porque nos tornámos especialistas em virar a cara, em relativizar, em dizer “eles que se entendam”, como se um lado não estivesse a ser sistematicamente exterminado.

E, perante isto, a comunidade internacional continua paralisada — ou pior, cúmplice. A ONU emite resoluções que não são cumpridas. A União Europeia solta comunicados tímidos, enquanto continua a manter relações diplomáticas e comerciais com o agressor. Governos limitam-se a "expressar preocupação". Israel, mesmo sob denúncias de genocídio, crimes de guerra e fome forçada, não sofre consequências reais. Leva sermões. Palmadinhas nas costas. Votos de "contenção". Enquanto isso, as vítimas são brutalmente mortas por uma guerra que não pediram, num território de onde não podem sair, perante o olhar desligado de quem podia, e devia, agir.

A impunidade é total. A justiça internacional falha, a diplomacia encolhe os ombros, e o mundo continua a assistir. Sem pressa. Sem vergonha. Sem urgência.

Pergunto-me: onde está a empatia? Quando foi que deixámos de nos comover com a dor dos outros? Quando é que banalizámos tanto a violência que ela já nem nos fere? Quando é que passámos a assistir ao horror e a chamá-lo de “contexto”?

O que está a falhar não são só os sistemas que nos representam e deviam proteger. Somos todos nós.
A humanidade desligou-se. Não por completo porque ainda há quem resista. Mas quem sente verdadeiramente, hoje, sente-se sozinho. Fora de lugar. Estranho. Como se ter empatia fosse um excesso. Uma patologia.

Não precisamos de heróis. Precisamos de humanos. Humanos inteiros. Capazes de sentir, de não virar a cara, de não aceitar o inaceitável. Não é por ideologias, nem por bandeiras. É por pessoas. Por vidas que valem o mesmo, em qualquer lado.

Onde se liga o botão da humanidade?