A Câmara Municipal de Lisboa anunciou a decisão de recorrer da sentença judicial que condenou o município ao pagamento de mais de um milhão de euros, no âmbito do caso Russiagate, o que suscita diversas questões sobre as verdadeiras prioridades do executivo municipal.

A condenação judicial não decorre apenas da partilha indevida de dados pessoais de ativistas russos com a Embaixada Russa em Portugal, mas de um conjunto de práticas que violam, de forma grosseira, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) e, consequentemente, os direitos fundamentais dos cidadãos, no caso estrangeiros. Ao ler a sentença descortinam-se uma série de violações sistemáticas, nomeadamente, falta de medidas de segurança adequadas ou a ausência de transparência no tratamento de dados pessoais.

Não é de olvidar, que o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), foi implementado para garantir que os cidadãos europeus, ou outros que se encontrem no espaço europeu, tenham controlo sobre os seus dados pessoais. Pelo que, as infrações cometidas pela Câmara Municipal de Lisboa, confirmadas pela autoridade de controlo nacional, CNPD, e confirmadas pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, representam diversas falhas graves no cumprimento destes princípios, expondo os cidadãos a riscos desnecessários e a danos de tal dimensão que podiam impedi-los de rever a sua família ou de serem perseguidos tal como Alexei Navalny (que faleceu perseguido por Putin).

Ao decidir recorrer da multa, conforme ontem anunciado, a Câmara Municipal de Lisboa parece mais preocupada em proteger a imagem da autarquia e evitar as consequências financeiras, em detrimento da assunção de responsabilidades pelos erros cometidos.

Este comportamento levanta uma questão central: o que significa, afinal, defender os lisboetas?

Impedir que qualquer cidadão lisboeta possa sofrer os mesmos danos, em resultado do incumprimento do estabelecido no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados Pessoais, na medida em que se recorre e não existem consequências.

Ou importa acima de tudo defender os cofres municipais, mesmo reconhecendo o desrespeito e a gravidade do comportamento do município lisboeta?

A resposta depende dos valores de quem dirige a Câmara Municipal de Lisboa, no presente momento. Assumindo a sua culpabilidade, isto é, o facto de ter praticado diversas contraordenações, não será um recurso de algum modo assumido como “inaceitável” – nas palavras de Carlos Moedas – que “protege os lisboetas”. Pois apesar da aceitação da culpa ou mero respaldo na prescrição, com eventual descida do valor da coima, não indicia, nem garante que não volte a Câmara Municipal a incorrer nestes comportamentos, como também não “salvaguarda o bom nome da instituição”. Melhor fora que a salvaguarda desse bom nome fosse alcançada pela aceitação da culpabilidade, na medida em que seria o efetivo reconhecimento da censura do próprio dirigente máximo pela prática daqueles factos. Da mesma forma que serviria como alerta bastante para os serviços municipais não se sentirem “impunes” face às obrigações constantes do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, ao fim de quase seis anos de aplicação.

A decisão de recorrer, transmite a mensagem de que os direitos dos cidadãos podem ser desvalorizados em função de interesses administrativos ou políticos, ou meramente desvalorizados face a um uso processual. Por outras palavras, a Câmara Municipal de Lisboa reconhece o erro e a gravidade da sua atuação, mas por mero recurso ao prazo de prescrição procura não ser sancionada e passar incólume.

É, certamente, um sinal preocupante de uma administração que coloca as suas próprias prioridades acima dos valores que deveriam orientar a sua ação, nomeadamente a defesa intransigente de liberdades e garantias, constitucionalmente protegidas dos cidadãos que administra.

A instituições públicas têm o dever de dar o exemplo no cumprimento da legalidade, estão aliás vinculadas a esse principio. Quando a Câmara decide recorrer em vez de reconhecer os seus comportamentos erráticos e contrários à lei, está a enviar uma mensagem contrária aos princípios da transparência e responsabilidade, que devem nortear a sua atividade. Esta atitude sugere uma desconexão entre o executivo municipal e os direitos e proteção dos cidadãos lisboetas.

O caso Russiagate é muito mais do que um incidente isolado de partilha indevida de dados; é um reflexo de uma cultura institucional que compromete os direitos fundamentais dos cidadãos. A decisão de recurso revela uma postura defensiva que ignora a necessidade de proteger e respeitar os direitos dos lisboetas.

Defender os lisboetas significa, antes de mais, garantir que os seus direitos e liberdades são respeitados e protegidos de forma intransigente. A Câmara Municipal de Lisboa deveria aceitar a coima, reconhecer os seus comportamentos irregulares ou ilegais e tomar medidas para reforçar as suas práticas de proteção de dados assegurando que situações como esta nunca mais se repetiam. Afinal a verdadeira defesa dos lisboetas passa pela defesa dos seus direitos e pela confiança nas instituições que os servem.

Coisa diferente é se a Câmara Municipal de Lisboa pretende valer-se do mero instituto da prescrição e como tal recorrer da decisão judicial. Nesse caso é evidente que a a vitória é de mera secretaria, já que a condenação é acatada, como vimos pelo próprio dirigente máximo do município lisboeta.

Defender os lisboetas será não recorrer à mera “vitória de secretaria” por via da prescrição e dar um sinal claro aos serviços camarários de que os dados pessoais dos lisboetas têm uma importância vital e devem ser respeitados na integralidade, sob pena de existirem consequência de avultado valor em prejuízo do serviço público.

Jurista / Consultora em RGPD e RGPC