
Zeferino Coelho cresceu numa aldeia do norte, em Paredes, num país com as janelas fechadas, conservador e salazarista, e numa casa sem livros para a isso escapar, mas logo aos 13 anos descobre o gosto pela leitura nas carrinhas da biblioteca itinerante da Gulbenkian que o levaram a devorar um mundo de obras literárias durante a adolescência.
Começa aí um mergulho, uma sede crescente, um prazer sem tamanho e sem fim pela literatura, com um sentido de missão, de rigor e de ética pela defesa dos seus autores e pelo valor dos livros, que o acompanha até hoje e que o leva a ser um dos editores literários mais conceituados do país.
É co fundador da Caminho, e o único editor de uma obra de língua portuguesa distinguida com o Prémio Nobel da Literatura, uma distinção atribuída a José Saramago, em 1998.
Nesta conversa em podcast Zeferino Coelho conta o tanto que andou até aaqui chegar e como foi receber a notícia furacão de um prémio que prestigiou para todo o sempre um país, despertando o mundo para a sua literatura, num dia em que, nas palavras de Saramago: ‘os portugueses cresceram três centímetros – (em que) todos nós nos sentimos mais altos, mais fortes, mais formosos até .’
Zeferino refere-se a essas décadas em que acompanhou a edição dos muitos livros de Saramago, como a ‘cavalgada sem descanso”.
E recorda como era editar Saramago, e como foi ver um autor considerado maldito, tornar-se um dos maiores e mais prestigiados escritores do mundo.
Além do Nobel, importa dizer que Zeferino Coelho pode orgulhar-se de ser o editor de 8 prémios Camões. Oito. É obra.
De destacar também o seu papel no impulso da literatura infanto-juvenil e enquanto divulgador de autores africanos como Mia Couto ou Ondjaki.
E aqui se dá conta que na sua família de autores e autoras, há uma nova geração em que Zeferino aposta, escritores que o acompanham nas últimas décadas, de forma muito fiel e cúmplice, com confiança e admiração.
Como acontece com quase todas as vidas, a de Zeferino resume-se a uns quantos momentos chave.
O primeiro que Zeferino recorda passou-se quando ele teria 15 anos, e estava no Liceu de Guimarães diante da folha de inscrição no sexto ano.
Tinha que escolher ali mesmo o curso, a “alínea” como se dizia na época.
Na falta de melhor, Zeferino Coelho escolheu a f) de Filosofia, que pouco tempo antes um amigo lhe aconselhara, ao mesmo tempo que vivamente lhe desaconselhara a d) de Direito, dizendo que Zeferino, com a Filosofia, faria o curso “com uma perna às costas”.
O que de facto aconteceu por motivos que Zeferino diz não querer recordar…
O momento seguinte dá-se já no Porto, logo após o fim do curso, quando disse que “sim” a um convite do editor Cruz Santos para ir trabalhar com ele na Editorial Inova. Na altura, não foi mais que um part time enquanto esperava ser chamado para a tropa. Mas o trabalho nessa editora acabou por ser a sua verdadeira licenciatura…
Outro momento, que Zeferino destaca foi o convite do seu camarada Carlos Costa, que dirigia o PCP no Norte de Portugal, quando lhe perguntou se Zeferino estaria disponível para trocar o serviço militar pela luta antifascista na clandestinidade.
Zeferino aceitou viver na sombra durante uns tempos por entender tratar-se de um dever a que não se poderia furtar.
Como foi viver com o medo, na clandestinidade, com um nome falso, arriscando a liberdade ou até mesmo a vida? A questão é-lhe lançada.
Passaram seis anos até Zeferino reencontrar em Lisboa alguns amigos e camaradas que o convidaram a ir trabalhar na Caminho, onde eles já trabalhavam, logo que saísse da tropa.
Aceitou o desafio e o resto é a história que muitos conhecem, marcada por três decisões que moldaram a sua vida até hoje:
O facto de em 1979, ter tido a lucidez de defender com unhas e dentes a atribuição do Prémio para originais de literatura juvenil ao livro Rosa, Minha Irmã Rosa, de Alice Vieira.
O facto de ter proposto a edição da peça de teatro A Noite, de José Saramago, quando muitas editoras o tinham recusado.
E o facto de ter proposto a publicação de um livro com o título Uma Aventura na Cidade, de Ana Maria Magalhães e de Isabel Alçada. Uma colecção que teve logo enorme êxito, lida por várias gerações.
Foi sobre estes três pilares que se construiu a Editorial Caminho e, por arrasto, a vida de Zeferino Coelho. Três momentos a que Zeferino regressa nesta conversa, para melhor os contar.
Quem o conhece de perto afirma que ele é um editor sempre do lado dos seus autores e autoras, de quem se torna tantas vezes amigo. E que está disponível para ir até onde o livro pede.
E, por isso, tantas vezes tem arriscado, sem nunca ceder às modas, modinhas e formatos, fórmulas e estratégias importadas das américas sobre o que vende e dá números e fama.
Que diagnóstico faz atualmente Zeferino do mercado literário português? Mudou muito a forma como se lê e se edita livros desde que começou neste ramo há 50 anos?
Qual o seu olhar sobre os best sellers que estão arrumados nas prateleiras da literatura e seus autores? Ainda se lê pouco e mal em Portugal?
Ser editor é procurar agulhas de diamante num palheiro de muitos textos medíocres e mal escritos? O que faz de alguém um bom editor? E um bom escritor? Um bom escritor ou uma boa escritora nunca irá muito longe se não tiver consigo um bom editor?
Num país, numa Europa e num mundo num estado tão difícil, extremado, com tantos atentados à democracia, continuar a publicar de forma militante tantos livros, aos 79 anos é um ato de liberdade e de resistência?
O que o leva a continuar? Como mantém a esperança e a utopia quando o horizonte não augura nada de bom? Nestas alturas a literatura também salva?
Estas são algumas das questões que surgem ao longo deste episódio e que Zeferino responde.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Matilde Fieschi. E a sonoplastia deste podcast é de Salomé Rita.
A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.