
Não serão poucos aqueles que “morrem de saudades” da Bica do Sapato, sobretudo os lisboetas que viviam o Bairro Alto, para quem o Lux e este restaurante funcionavam quase como casa, até pouco antes da viragem do milénio. Seis anos depois do encerramento, em 2019, a versão 2.0 da Bica do Sapato está de portas abertas.
Os responsáveis consideram que estes primeiros dias, em soft opening, servem de “turno zero”: “Esta casa não recomeça. Continua. Um espaço moldado pela memória, mas voltado para o futuro. Não é um lugar que repete, mas que acrescenta. Com cuidado, intenção e ritmo, a Bica regressa este verão como uma casa com muitas vozes e uma só alma”, podia ler-se no dia 15 de agosto, na página de Instagram da Bica do Sapato.
“Abrimos, devagar, para dar os primeiros passos”
Feita a reserva, a mesa está pronta para a primeira experiência na nova Bica do Sapato: “Abrimos, devagar, as portas desta casa para darmos os primeiros passos, e afinarmos todos os detalhes”. A vista mantém-se e é um privilégio. O espaço revela-se mais amplo, com menos divisórias, o teto está mais claro, mas permanecem vários elementos, como a garrafeira antiga que foi reposicionada e o piso do chão que muitos percorreram, assim como a emblemática lareira.
Os novos sócios da Bica do Sapato são consultores imobiliários. Celso Assunção e Francisco Lacerda juntaram-se para explorar a concessão do restaurante e de todo o bloco de estabelecimentos frente ao Tejo onde se insere, ainda com nove anos de prazo remanescente, com direito de preferência na renovação. “A visão era alugar os espaços, curar o que se passa aqui, manter o que correu bem”, explica Francisco Lacerda.
“Existia uma tendência para desvalorizar o que tínhamos, a minha geração adorava tudo o que vinha de fora”, comenta. Considera que a perceção da marca Portugal melhorou drasticamente por parte de quem está no exterior, mas também de quem vive em Portugal. Ambos chegaram à conclusão de que “a Bica do Sapato é uma marca que não pode morrer, ligada à arte, cultura, com um posicionamento único, comida portuguesa moderna, que teve uma história e pela qual as pessoas têm um carinho enorme”.
“Não queremos fazer da Bica do Sapato um museu”
Figuras como Manuel Reis, um dos sócios fundadores da Bica do Sapato, juntamente com Fernando Fernandes e José Miranda, proprietários do antigo Pap’Açorda, são insubstituíveis. Celso Assunção e Francisco Lacerda tentam respeitar o legado e uma das formas que encontraram para o fazer foi “andar para a frente porque não queremos fazer da Bica do Sapato um museu”.
Perceberam que tudo o que Manuel Reis fazia “era à frente do seu tempo” e resolveram esta questão “ao tornar tudo português”, o que significa que tanto o projeto arquitetónico como a decoração, assinados pelo ateliê FSSMGN Arquitectos, Lda., a cargo de Francisco Tojal, com a supervisão de Manuel Aires Mateus, são nacionais. As mesas foram desenhadas e produzidas pelo Estúdio Branca Lisboa, de Marco Sousa Santos, assim como algumas cadeiras e mobiliário exterior. Daciano da Costa também idealizou mobiliário. Maria Appleton tratou das cortinas de 45 metros de altura que dividem o espaço. Quanto ao “enxoval”, os talheres são de Manuel Aires Mateus, os pratos da Molde Ceramics, com assinatura do designer Filipe Alarcão. Destaque ainda para as bicas de cerveja no piso superior também com desenho de Aires Mateus.
Francisco Lacerda faz questão de sublinhar que todas as marcas quiseram desde logo participar no projeto devido à consideração que tinham pelo nome Bica do Sapato. Conta que, juntamente com Celso Assunção, tiveram de “ganhar um pouco coragem” para assumir o projeto por se tratar de “um restaurante com 300 lugares e apesar dos números promissores do turismo em Lisboa, esta é ainda uma cidade pequena”. Celso Assunção confessa, todavia, que a Bica do Sapato foi “uma inspiração de sempre” que inclusive utilizou quando idealizou o Farol Design Hotel, em Cascais, em 2003. Assunção quer implementar “a forma de servir portuguesa” por se tratar de uma identidade, diferente da americana ou de qualquer outra e, depois, “expandi-la para outros locais como hotéis, porque com os artistas portugueses que participam no projeto é possível reproduzir o conceito”, destaca.
Para já, os sócios prometem uma curadoria atenta: querem ser um palco para DJs e músicos portugueses, mas também de artistas que querem mostrar o que estão fazer.
Conhecer os cantos à nova casa
A Bica do Sapato vai funcionar das 10h00 às 2h00, com almoços, jantares, um balcão de take away (À Beira do Sapato), e, claro, música e cocktails. “Temos o ambiente, a acústica, a térmica e queremos curar a experiência para as pessoas ao longo do dia, um pouco como se fosse um hotel”. Em breve servirá também pequenos-almoços.
Além do restaurante, com sala e esplanada, junto à icónica lareira funcionará o bar com curadoria Red Frog, o único bar português classificação na lista dos melhores do mundo pela The World’s 50 Best.
No primeiro piso, onde antes se encontrava o restaurante de sushi, haverá uma cervejaria com balcão e mesas cujo nome está, para já, definido como “Trinca o Sapato”, com uma ementa onde dominam pregos, bifanas, pão com chouriço ou francesinha, sendo este espaço chefiado por Hugo Guerra, um filho da casa que já fez parte da equipa no passado, reconhecido pelo trabalho em locais como o Lobo Mau, na Estefânia, em Lisboa, onde é chef e proprietário. A Bica do Sapato dispõe ainda de uma área privativa, com capacidade para 30 pessoas, sempre com inconfundível vista rio , que foi batizado de “Escritório”.
Cozinha com memória, técnica e paciência
Milton Anes, nascido em Paris, com raízes familiares transmontanas, experiência em espaços distinguidos com estrelas Michelin com José Avillez, no Tavares, em Lisboa, e no LAB by Sergi Arola, em Sintra, foi escolhido pelo vasto conhecimento da gastronomia portuguesa. A cozinha assenta na memória, na técnica e na paciência — guiada pela convicção de que o sabor leva tempo. Para Milton, a Bica do Sapato “é um catalisador: um espaço para repensar toda a indústria da restauração, das condições de trabalho e habitação aos sistemas alimentares e à produção local”. Com ideias futuras que podem incluir “mercados mensais de produtores e residências para colaboradores vindos de fora”, Milton imagina um restaurante que “nutre não só quem se senta à mesa, mas todos os que dele fazem parte”.
Na primeira ementa da Bica do Sapato 2.0, a rubrica mais interessante será a que comporta 14 sugestões para partilhar, muitas das quais lisboetas com um toque de criatividade, como os “Pastelinhos de bacalhau”, neste caso em cubinhos de massa filo com aioli de fígados de bacalhau fumados (€15, seis unidades), os “Peixinhos da horta” (€11), com molho de coentros, couve-roxa e limão, e o “Caril de moelas estufadas” (€16), com iogurte de hortelã e pão naan. Destaque ainda para o refrescante “Carpaccio de Gamba do Algarve” (€24), com salada de espinafres e mandioca crocante e vinagrete de yuzu, e para as “Lascas de novilho fumado com maionese de anchovas, queijo Idiazábal e vermute” (€18), um prato de sabores intensos. Nas propostas de enchidos (lombo, paiola e chouriço) predominam os Castro y González, (€24).
“Bacalhau com todos e mais alguns…”
Dos pratos principais de peixe constam o “Bacalhau com todos e mais alguns...” (€27), “Salmonete assado com katsu de legumes da época, puré de batata-doce e jus de fígados” (€46) e merece referência especial a “Raia assada com tomilho limão” (€32), com um original picadinho de pezinhos de coentrada e batatinhas soufflé de morcela. Nas carnes, destacam-se os “Secretos de porco preto Bulgogui (de origem coreana), puré de couve-flor Roquefort, kimchi e compota de alperce e toranja” (€35), "Rodeão de Wagyu grelhado com puré de batata, alface grelada e chimichurri de mistura basca” (€45) e “Pombo Royal assado e macerado em pimenta timut, cerejas glaceadas em Amaretto e amêndoas, jus de avelã” (€48).
Para terminar, o pasteleiro Joaquim de Souza, chef que tem como sobremesa de assinatura a famosa “Flor de Chocolate”, propõe o “Pudim Abade Priscos” (€11), torresmo e gelado de lima keffir, “Bolo de bolacha com espuma de café Brasil 100% arábica” (€10) e “Baba au rhum, lembranças de um mojito e ananás dos Açores grelhado” (€10,50).
Quanto aos vinhos, a carta ainda está em execução, mas a ambição é muita: os sócios querem “ter todas as regiões e castas portuguesas, além de referências estrangeiras”.
Palco de chefs e de John Malkovich
O restaurante Bica do Sapato abriu portas em junho de 1999 e encerrou 20 anos depois. Fernando Fernandes e José Miranda (proprietários do antigo Pap’Açorda), Manuel Reis (fundador do bar Frágil e do Lux), entretanto falecido, e o ator John Malkovich tornaram-se sócios daquele que viria a ser um espaço cosmopolita, com sushibar, cafetaria, fine dining e esplanada. O primeiro chef a liderar a cozinha foi Joaquim Figueiredo. Seguiram-se Fausto Airoldi, João Rodrigues, Alexandre Silva, Bertílio Gomes, Henrique Mouro e Pedro Rezende Pereira.
Com o desaparecimento de José Miranda, em 2016, e de Manuel Reis, em 2018, acabou por fechar portas em 2019, oficialmente para obras. Reinventado, reabriu agora, herdeiro de uma história bonita que se espera seja marcada mais uma vez por momentos inesquecíveis. A nova Bica do Sapato (Avenida Infante D. Henrique - Armazém B – Cais da Pedra a Santa Apolónia, Lisboa) encerra para já ao domingo e à segunda-feira. Para reservas deve utilizar o email reservas@bicadosapato.com ou a página oficial em bicadosapato.com.