Dois grandes players globais em Recursos Humanos, a Deel e a Rippling, estão no centro de um escândalo que tem agitado o setor tecnológico. Segundo processos judiciais, a Deel terá orquestrado um esquema de espionagem industrial contra a sua rival, recorrendo ao recrutamento de um “espião” interno para aceder sistematicamente a informações confidenciais.

É particularmente dececionante ver duas empresas, às quais é confiada a gestão de dados sensíveis, envolvidas em alegações desta natureza. A confirmarem-se, estas acusações devem traçar uma nova linha vermelha sobre o limite até onde alguns empreendedores estão dispostos a ir para maximizar os seus próprios interesses financeiros. Este não é caso único. Outros exemplos mediáticos mostram até onde a ambição desenfreada pode levar.

A Builder.ai, por exemplo, recorreu a AI washing para inflacionar receitas e enganar investidores, e a Theranos prometeu inovações médicas que se revelaram fraudulentas. Já o caso da WeWork ilustra bem como uma visão arrojada e uma personalidade carismática podem, quando mal equilibradas, levar a práticas de gestão duvidosas. Mesmo assim, depois do escândalo e da queda da empresa, Adam Neumann conseguiu captar um investimento significativo para a sua nova startup, a Flow, que rapidamente atingiu uma avaliação de 2,5 mil milhões de dólares. Isto mostra que, para alguns investidores, o potencial de retorno financeiro ainda se sobrepõe a qualquer preocupação ética.

É fácil acreditar numa narrativa em que os empreendedores começam com uma vontade genuína de inovar, a tecnologia ainda não está madura e a pressão para mostrar resultados ao mercado e aos investidores acaba por empurrá-los para um rabbit hole de mentiras e mais mentiras. Já no caso Deel vs. Rippling, a linha ultrapassada é menos compreensível. Não há narrativa que salve a integridade e o caráter do CEO da Deel se as alegações se provarem. Má gestão ou modelos de negócio insustentáveis não se equiparam a crimes como espionagem corporativa e roubo de segredos comerciais, embora ambos revelem a fragilidade dos pilares éticos em algumas startups.

É inegável que a inovação e o empreendedorismo implicam, por vezes, desafiar o estabelecido e puxar pelos limites. Mas há linhas que não devem ser cruzadas. É possível ser disruptivo sem transgredir a lei ou abdicar da ética. Nos negócios, tal como no desporto, a competição saudável pode ser um dos grandes motores para o crescimento (veja-se o exemplo da rivalidade Messi vs. Ronaldo). Mas, quando há jogo sujo e precisamos de partir os joelhos aos adversários (como aconteceu, literalmente, no escândalo que envolveu Tonya Harding), a competição deixa de ser baseada no mérito. Surge então a velha questão: até que ponto os fins justificam os meios?

Fraudes e escândalos como os da Theranos e da Deel são graves e acabam por minar a confiança no sector a longo prazo. Contudo, existem casos de empresas bem-sucedidas, como a Uber, que chegaram a recorrer a táticas agressivas e controversas (tal como relatado em “Super Pumped”, de Mike Isaac) e, ainda assim, criam algo com valor no mercado. O balanço torna-se, por isso, difícil de apurar.

Até que ponto o impacto positivo compensa as cicatrizes éticas? Na minha perspetiva, as startups devem focar-se na criação de valor a longo prazo, privilegiando a credibilidade e a inovação genuína, em vez de soluções de curto prazo para responder a pressões do mercado. Inovação disruptiva e competitiva, sim, mas dentro dos parâmetros éticos e legais.

Apesar de o futuro até poder vir a ser das máquinas, no presente as empresas ainda são feitas de pessoas. Vale a pena perdermos os nossos valores, o nosso carácter… a nossa humanidade? Os trabalhadores quererão trabalhar para patrões sem escrúpulos? Num mundo em que os deepfakes esbatem a fronteira da verdade, e a reputação e a confiança são ativos tão valiosos quanto a própria inovação, é importante refletir sobre o que realmente queremos premiar.

Cabe-nos a nós, enquanto trabalhadores e consumidores, valorizar empresas que respeitam a ética e afastar-nos das que sistematicamente a ignoram. Apoiar quem ultrapassa linhas que deviam ser intransponíveis é, no fundo, ser cúmplice.

Se ambicionamos um futuro mais saudável, próspero e confiável para o ecossistema de startups, então a ética, a transparência e a responsabilidade têm de ser a regra, e não a exceção.